sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Algum dia um novo Papa

Algum dia um novo Papa
Anunciará altivo
Que é Deus a raiz quadrada
De um quantum negativo

E o Deus que tanto procuro
Em que atingido me afundo
É aquele ser-não-ser
Do que acontece no mundo

Da matéria mais que densa
É que é divertido ser
Ali se nada acontece
Tudo pode acontecer
Agostinho da Silva


Algún día un nuevo Papa

Algún día un nuevo Papa
anunciará altivo
Que es Dios la raíz cuadrada
De un quantum negativo

Y el Dios que yo tanto busco
En que alcanzado me hundo
Es aquel ser-y-no-ser
De lo que pasa en el mundo

De materia más que densa
Es tan divertido ser
Allí si nada sucede
Todo puede suceder.

domingo, 13 de novembro de 2011

Se me vierem saudar à porta deixá-la-ei entreaberta
para que o vento a feche as mãos são por de mais
puras para que se fechem diante dos homens
não entendo como fora difícil decifrar que o tempo
é um extracto do que se considera como sendo um
preciso compor de velhos instantes
alguém me seguirá caso a porta se mantenha
entreaberta entre o corredor e o acesso dos degraus
das escadas cuja cor se confunde com o castanho
e o vermelho do barro e a secular pintura dos homens
inscritas em velhos jornais
se crescem plantas entre as avenidas é porque alguém
as jogou primeiro como vivas sementes em terreno
nacional e em praça municipal
se colho de tarde restos de brilhos do sol onde nasce
a lua continua o arquivar da luz para que as noites
nunca se esgotem em nós para que as palavras nunca
se nos pereçam e para que sejamos nós mesmos diante
de um acordeão em bailes de rebita
se me vierem saudar à porta deixá-la-ei entreaberta
para que o vento a feche pois as mãos são por demais
puras para que se fechem diante dos homens

Nok Nogueira. Jardim de estações. nóssomos (2011)



Si me vienen a saludar a la puerta la dejaré entreabierta
para que el viento la cierre las manos son por demás
puras para que se cierren ante los hombres
no entiendo cómo ha sido tan difícil descifrar que el tiempo
es un extracto de lo que se considera como siendo un
preciso componer de viejos instantes
alguien me seguirá si acaso la puerta se mantiene
entreabierta entre el pasillo y el acceso de los peldaños
de las escaleras cuyo color se confunde con el castaño
y el rojo del barro y la secular pintura de los hombres
inscritas en viejos diarios
si crecen plantas entre las avenidas es porque alguien
las echó primero como vivas semillas en terreno
nacional y en plaza municipal
si cojo por la tarde restos de brillos del sol donde nace
la luna continúa el archivar de la luz para que las noches
nunca se agoten en nosotros para que las palabras nunca
se nos perezcan y para que seamos nosotros mismos ante
un acordeón en bailes de rebita (1)
si me vienen a saludar a la puerta la dejaré entreabierta
para que el viento la cierre pues las manos son por demás
puras para que se cierren ante los hombres

1. Nota de la T.: La rebita es un baile típico de Luanda, que data del siglo XIX, inspirado en los bailes de salón europeos.

domingo, 6 de novembro de 2011

Sem outro intuito

Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.

Luís Miguel Nava


Sin otro objeto

Arrojábamos piedras
al agua para que el silencio saliese a flote.
El mundo, que los sentidos tonifican,
nos surgía entonces todo enterrado
en nuestra propia carne, envuelto
a veces en feroces transparencias
que las piedras azuzaban
sin otro objeto que el de que extrayesen
de las aguas el silencio que las unía.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Claustrofobia

Valsa fechada de contornos poupados
Pelos metros da sala que não se alarga
De cantos subtis e contraídos, nos lados
Acentuada como se lá não estivesse ninguém.

Cada vez mais imóvel, a valsa agora
Dançando pela fundura alta, sem saída,
Onde as paredes deixam de ser brancas, a hora
É interrompida pela música que se esquece
De tocar e o passo cada vez mais convida
Os pés a ficar sem responder.

É preciso respirar, desafogar-se do medo,
Esmurrar o tapume cego dos limites,
Gozar cada toque de dedos na nota
Do piano leve, gizando lá fora,
As pautas de uma dança devota
Pela liberdade.

Fracos os que repetem:
Não fales, não grites, não te movas
Enquanto o espaço não o disser.

Sarah Virgi. Intercadências. 2011
[através de Uma casa em Beirute]


Claustrofobia

Vals cerrado de contornos ahorrados
Por los metros de la sala que no se ensancha
De esquinas sutiles y contraídas, a los lados
acentuada como si no hubiese en ella nadie.

Cada vez más inmóvil, el vals ahora
Bailando por la hondura alta, sin salida,
Donde las paredes dejan de ser blancas, la hora
Es interrumpida por la música que se olvida
De tocar y el paso cada vez más invita
A los pies a quedarse sin responder.

Es preciso respirar, desahogarse del miedo,
Aporrear la tapia ciega de los límites,
Disfrutar de cada toque de dedos en la nota
Del piano leve, marcando allá afuera,
Las pautas de una danza devota
Por la libertad.

Débiles los que repiten:
No hables, no grites, no te muevas
Mientras el espacio no lo diga.

domingo, 16 de outubro de 2011

Ecos

Em voz alta, ensaiei o teu nome:
a palavra partiu-se
Nem eco ínfimo neste quarto
quase oco de mobília

Quase um tempo de vida a dormir
a teu lado e o desapego é isto:
um eco ausente, uma ausência de nome
a repetir-se

Saber que nunca mais: reduzida
a um canto desta cama larga
o calor sufocante

Em vez: o meu pé esquerdo
cruzado em lado esquerdo
nesta cama

O teu nome num chão
nem de saudades

Ana Luísa Amaral. Se fosse um intervalo. Dom Quixote (2009)


Ecos

En voz alta, he ensayado tu nombre:
la palabra se ha roto
Ni eco ínfimo en esta habitación
casi hueca de muebles

Casi un tiempo de vida durmiendo
a tu lado y el desapego es esto:
un eco ausente, una ausencia de nombre
que se repite

Saber que nunca más: reducida
a un extremo de esta cama ancha
el calor sofocante

En cambio: mi pie izquierdo
cruzado en lado izquierdo
en esta cama

Tu nombre en un suelo
ni de añoranza

domingo, 9 de outubro de 2011

O anjo que até dá pena

Mora uma aranha na caixa do correio
a teia não me deixa ler as tuas cartas
come-me as palavras como insectos
uma a uma
até que fica só o remetente         que sou eu
e como não te posso ouvir
como não te posso falar
como não te posso ler
fico assim      apertado      sem correio
fico aqui      apartado      sem correio
e o carteiro que podia entregar em mão diz
não são registadas
apesar de me lembrar
não podem ser assinadas
e a tinta está a secar
um dia perco a cabeça       e mando o meu corpo para o céu      em correio azul
meu anjo
meu anjo analfabeto
que não escreve
nunca escreveu
e não pode ler-me a sina      porque não tenho mãos      gastei-as no apertar
porque não tenho peito
mirrou de tanto bater
porque não tenho tempo
dei-to todo
todo
para que te sentes à escrivaninha
pegues na cartilha       e aprendas a ler

João Negreiros. O cheiro da sombra das flores. Papiro Editora (2007)


El ángel que hasta da pena

Vive una araña en el buzón
la tela no me deja leer tus cartas
me come las palabras como insectos
una a una
hasta que queda sólo el remitente       que soy yo
y como no te puedo oír
como no te puedo hablar
como no te puedo leer
me quedo así       apretado       sin correo
me quedo aquí       apartado       sin correo
y el cartero que podía entregar en mano dice
no son certificadas
a pesar de acordarme
no pueden ser firmadas
y la tinta se está secando
un día pierdo la cabeza       y mando mi cuerpo al cielo       por correo urgente
mi ángel
mi ángel analfabeto
que no escribe
nunca ha escrito
y no me puede leer el destino       porque no tengo manos       las he gastado en apretar
porque no tengo pecho
se ha agostado de tanto latir
porque no tengo tiempo
te lo he dado todo
todo
para que te sientes a la escribanía
cojas la cartilla       y aprendas a ler

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O fim da aventura

À tarde sento-me no jardim do bairro
onde os lódãos acolhem melros
e enchem de sementes as inférteis
alamedas de alcatrão.

É o primeiro domingo sem ti,
em tudo igual aos outros domingos:
ruas despovoadas, grades nas montras
escuras, um pacato mundo de vizinhos
temporariamente ausentes.

Deixo-me ficar ao frio um bom bocado,
distraído pelo fútil desejo de ser
o próximo estranho que atravesse
a rua, de não ter sequer o abrigo
dum nome.

E, de súbito, ei-la que regressa,
após meses de remanso em parte
incerta: conjurei a sombra azeda
que me sussurra ao ouvido.

Cá está ela, sim, íngreme
e sedenta.

A poesia.

Rui Pires Cabral. Capitais da solidão. "Museu do amor" (2006)


El final de la aventura

Por la tarde me siento en el jardín del barrio
donde acogen mirlos los almeces
y llenan de semillas las infértiles
alamedas de alquitrán.

Es el primer domingo sin ti,
en todo igual a los demás domingos:
calles despobladas, rejas en los escaparates
oscuros, un plácido mundo de vecinos
temporalmente ausentes.

Me dejo estar al frío un buen rato,
distraído por el fútil deseo de ser
el próximo extraño que atraviese
la calle, de no tener siquiera el amparo
de un nombre.

Y, de repente, hela ahí que regresa,
tras meses de remanso en lugar
incierto: conjuré la sombra agria
que me susurra al oído.

Aquí está ella, sí, escarpada
y sedienta.

La poesía.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

O silêncio

Pego num pedaço de silêncio. Parto-o ao meio,
e vejo saírem de dentro dele as palavras que
ficaram por dizer. Umas, meto-as num frasco
com o álcool da memória, para que se
transformem num licor de remorso; outras,
guardo-as na cabeça para as dizer, um dia,
a quem me perguntar o que significam.
Mas o silêncio de onde as palavras sairam
volta a espalhar-se sobre elas. Bebo o licor
do remorso; e tiro da cabeça as outras palavras
que lá ficaram, até o ruído desaparecer, e só
o silêncio ficar, inteiro, sem nada por dentro.

Nuno Júdice. A matéria do poema. Dom Quixote. 2008


El silencio

Cojo un pedazo de silencio. Lo rompo al medio,
y veo cómo salen de dentro las palabras que
quedaron por decir. Unas, las meto en un frasco
con el alcohol de la memória, para que se
transformem en licor de remordimiento; otras,
me las guardo en la cabeça para decírselas, un día,
a quien me pregunte qué significan.
Pero el silencio de donde las palabras habían salido
se vuelve a extender sobre ellas. Me bebo el licor
del remordimiento; y saco de la cabeza las otras palabras
que se habían quedado ahí, hasta que el ruido desaparezca, y sólo
el silencio quede, entero, sin nada por dentro.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Relógio morto

sinto-me como o tempo.
é anestésica a garganta que come a idade do tempo.

sinto-me como o tempo.
sónico e invisível nos espaços entre o fogo.

sinto-me e
subo
o elevador
sabotado
pelo preto mais branco
da lembrança.

temporizo-me como o senso do ar estimula a onda
e cronometro-me como a eficiência dum músculo.

quando não me perguntam sei
o tempo pelo vácuo.

deito fora todos os relógios
sinto.
como bem o tempo.
e ando.

Gavine Rubro.célula.rubra. (2011)


Reloj muerto

me siento como el tiempo.
es anestésica la garganta que come la edad del tiempo.

me siento como el tiempo.
sónico e invisible en los espacios entre el fuego.

me siento y
subo
el ascensor
saboteado
por el negro más blanco
del recuerdo.

me temporizo como el sentido del aire estimula a la ola
y me cronometro como la eficiencia de un músculo.

cuando no me perguntan sé
el tiempo por el vacío.

desecho todos los relojes
siento.
como bien el tiempo.
y ando.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Enfeitas de maboques cor da lua

Enfeitas de maboques cor da lua
a nossa aparente imobilidade
por detrás do párabrisas do nissan en andamento
na estrada do sumbe que entretece a linha
deste silêncio nocturno à beira-amor.

Minhas mãos viajam do volante para a mente.
Metalizo as pontas soltas da tua metafísica.
A natureza acomoda no espaço o dia íntegro
na exacta proporção de nos querermos.

Nada mais que uma alusão simbólica
à substituição do pneu de trás do carro
acabado de ruir como esse puzzle
das planícies da tua alma na relatividade do horizonte.

José Luís Mendonça. Não saias sem mim à rua esta manhã. nóssomos. 2011


Adornas de maboques color de luna

Adornas de maboques(1) color de luna
nuestra aparente inmobilidad
por detrás del parabrisas del nissan en marcha
en la carretera de sumbe que entreteje la línea
de este silencio nocturno a orillamor.

Mis manos viajan del volante a la mente.
Metalizo los cabos sueltos de tu metafísica.
La naturaleza acomoda en el espacio el día íntegro
en la exacta proporción en que nos queremos.

Nada más que una alusión simbólica
a la substitución de la rueda de atrás del coche
que se acaba de desbaratar como ese puzzle
de las planicies de tu alma en la relatividad del horizonte.

____________
(1) maboque: fruto del "maboqueiro", Strychnos spinosa, del tamaño de una naranja, de cáscara dura y pulpa acidulada.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Saco cheio...

Tinha um saco cheio de palavras para oferecer, mas levei-o a passear pela beira-rio e não sei como, perdi-o…
Perdeu-se-me, o saco, com as palavras que tinha para oferecer…
Será que se diluíram nas águas, elas, fugidas do saco cansadas de mim, estrangeiras…?
Será que se entusiasmaram palavras numa primeira vez água, depois rio…?
Correnteza, mar…?
Vazias vãs nenhumas…?
Ou será que mas roubaram: objectos pedras cristais …?
Deambulam vagabundas agora por feiras de velharias ao sábado, desde manhãzinha...?
Sem legítimo dono e destino incerto?
Jonas. Nostalgia


Bolsa llena...

Tenía una bolsa llena de palabras para regalar, pero me la llevé a pasear por la orilla del río y no sé cómo, la perdi…
Se me perdió, la bolsa, con las palabras que tenía para regalar…
Se habrán diluído en las aguas, ellas, huídas de la bolsa cansadas de mí, extranjeras…?
Se habrán entusiasmado palabras en una primera vez agua, después río…?
Corriente, mar…?
Vacías vanas ningunas…?
O me las habrán robado: objetos piedras cristales…?
Deambulan vagabundas ahora por baratillos de chamarileros los sábados, desde muy temprano...?
Sin legítimo dueño y destino incierto?

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Não conseguir acordar a inconsciência – seguir o rio

a pouca luz anterior de um fim de tarde
onde rolaram rostos vagos de cidade
trajectos de passos sucessivos ao lado das estradas
nos passeios, nas paragens, sem mistério
cronometrados.

o quiosque – o maço de tabaco, o diário
o café ocasional – as vozes dispersas em argolas
o almoço chinês – asas de pássaro e dificuldades
o banco – véus de números e sorrisos de contabilidade
a reunião fleumática – garças altas e nós de gravatas
o trabalho – folhas A4 e conversas fechadas
o supermercado – iogurtes, chocolate e congelados.


a pouca luz interior de um fim de tarde no hall,
na entrada. a correspondência aguarda.
nada de envelopes quadrados, postais,
letras sem computadores, caligrafias de aparo
ouros raros, há quanto tempo não escreves uma carta?


sem hesitar esqueceu as roupas em qualquer lado
no suporte da banheira, na esfera do porta toalhas
na cadeira mais pequena, nas costas do sofá
onde água, uma gota de água desliza e perde densidade.


sem mais que a parte de baixo, deitou-se gasto
de olhos rasgados e húmidos como Rubens, um dia
em Madrid, no museu do Prado, uma tela a óleo
um quadro, onde as peles claras, os penteados
não lembra bem, não interessa, já não sabe.


deitou-se cedo sem cumprir horários
muito perto daquele outro corpo deitado;
um campo de searas no Alentejo longe
onde a dança solta de aves no céu
onde os ninhos de cegonha, as espigas
agudas e risonhas.


não conseguiu acordar a inconsciência.
de olhos abertos como um mocho, mas sentado,
pensou nos jardins escondidos do Palácio.


a mão como um navio desceu do joelho
ao ângulo do ilíaco, passou o diafragma
até ao oriente oposto e diagonal de um ombro.
repetiu o gesto como quem completa uma oração
as mãos, as costelas flutuantes, passando
ao oposto ombro, diafragma, coração.
a cruzada dos braços e os sons do rádio
na hora das notícias. não interessa. não interessa.


obscura a luz do quarto e as duas almofadas
dunas brancas de algodão, anatómicas em socalco.
os lábios entreabertos, entrada sibilante
de uma ilha sem continentes, um lugar de silêncios;
porque não escreveste?
a alma sem asas, em arco, em queda.


apenas e agora a música cardíaca –
como a pedra grande expandindo os círculos,
a música – uma valsa longa e longínqua
nas margens nocturnas do Danúbio.


de madrugada o astro enviou os raios, miríades,
e as pálpebras já tontas encostaram os remos
e seguiram o rio –
José Ferreira. O Mar parece Azeite


No conseguir despertar la inconsciencia seguir el río

la poca luz anterior de un final de tarde
donde habían rodado rostros vagos de ciudad
trayectos de pasos sucesivos al lado de las carreteras
en las aceras, en las paradas, sin misterio
cronometrados.

el quiosco —el paquete de tabaco, el periódico
el café ocasional —las voces dispersas en argollas
la comida china —alas de pájaro y dificultades
el banco —velos de números y sonrisas de contabilidad
la reunión flemática —garzas altas y nudos de corbatas
el trabajo —hojas A4 y conversaciones cerradas
el supermercado —yogures, chocolate y congelados.


la poca luz interior de un final de tarde en el hall,
en la entrada. la correspondencia espera.
nada de sobres cuadrados, postales,
letras sin ordenadores, caligrafías de pluma
oros raros, ¿hace cuánto tiempo que no escribes una carta?


sin vacilar ha olvidado la ropa en cualquier lado
en el soporte de la bañera, en la esfera del toallero
en la silla más pequeña, en el respaldo del sofá
donde agua, una gota de agua se desliza y pierde densidad.


sin más que la parte de abajo, se ha acostado rendido
de ojos rasgados y húmedos como Rubens, un día
en Madrid, en el museo del Prado, un lienzo al óleo
un cuadro, donde las pieles claras, los peinados
ya no se acuerda bien, es igual, ya no sabe.


se ha acostado pronto sin cumplir horarios
muy cerca de aquel otro cuerpo acostado;
un campo de cereal en el Alentejo lejos
donde el baile libre de aves en el cielo
donde los nidos de cigüeña, las espigas
agudas y risueñas.


no ha conseguido despertar la inconsciencia.
con los ojos abiertos como un mochuelo, pero sentado,
ha pensado en los jardines escondidos del Palacio.


la mano como un navío ha bajado desde la rodilla
al ángulo del ilíaco, ha pasado el diafragma
hasta el oriente opuesto y diagonal de un hombro.
ha repetido el gesto como quien completa una oración
las manos, las costillas flotantes, pasando
al opuesto hombro, diafragma, corazón.
los brazos que se cruzan y los sonidos de la radio
a la hora de las notícias. es igual. es igual.


oscura la luz del cuarto y las dos almohadas
dunas blancas de algodón, anatómicas en bancal.
los labios entreabiertos, entrada sibilante
de una isla sin continentes, un lugar de silencios;
¿por qué no has escrito?
el alma sin alas, en arco, en caída.


nada más y ahora la música cardíaca —
como la piedra grande expandiendo los círculos,
la música —un vals largo e lejano
en las orillas nocturnas del Danúbio.


de madrugada el astro ha enviado los raios, miríadas,
y los párpados ya aturdidos han arrimado los remos
y han seguido el río—

quarta-feira, 20 de julho de 2011

bênção

Ter dinheiro e não ter
pagar ficar a dever
ir aos bares do Bairro Alto
beber nos bares nas barracas
cheio de cacau nos bolsos

depois deixar cair o cacau pelos bolsos abaixo
perder os óculos em Lisboa
andar à toa feito rock-star

regressar sem saber como
comprar dois bilhetes em vez de um
um para o Porto outro para Coimbra
viajar fodido dos cornos do estômago da barriga
entrar, saír e depois cair na cama
sem luz sem vontade
e depois regressar a Zaratustra
ao poeta-mago
ao céu ao sol à luz
às mulheres que queres
aos pulsos que cortas que feres
à prudência que mandas para o caralho
vira o baralho
e volta ao futebol
o circo máximo de outrora
quando caminhavas por Roma
entre Cícero e Augusto
rei morto, rei posto

em transe por Lisboa
ao acaso à deriva à sorte
como Pessoa
e, por duas horas,
não sabes o que fizeste
onde estiveste
com quem estiveste
ficou tudo em branco

hoje estás a caminho do mesmo
mas não tens cacau
e isto não é Lisboa
nem tu és o príncipe da Macedónia
só há golos e tolos a festejar
nuvens a perturbar — assim falava Zaratustra
e tu amas as alturas
amas realmente as alturas
e até a Humanidade
mas não suportas a pequenez dos homens

és daqueles que sabes
nada há a fazer
mesmo que vás pelos caminhos direitos
haverá sempre noites, dias em que seguirás
as ruas tortuosas
porque sabes que esse é o caminho do Céu
não o céu de Deus, de Alá ou de Cristo
mas o Céu de Nietzsche, de Blake, de Rimbaud,
de todos os malditos

Abençoados sejam os malditos
abençoados sejam os que procuram
a luz no meio das trevas
abençoados sejam os que te amam
abençoados os que enlouquecem
porque a loucura dos que se curvam
não é loucura, é doença.
António Pedro Ribeiro, Entre o vivo, o não vivo e o morto, 1 (2008)


bendición

Tener dinero y no tener
pagar quedar a deber
ir a los bares del Bairro Alto
beber en los bares en las casetas
con los bolsillos llenos de guita

después dejar caer la guita por los bolsillos
perder las gafas em Lisboa
andar a lo tonto en plan rock-star

regresar sin saber cómo
comprar dos billetes en vez de uno
uno a Oporto otro a Coimbra
viajar jodido del coco del estómago de la tripa
entrar, salir y después caer en la cama
sin luz sin ganas
y después regresar a Zaratustra
al poeta-mago
al cielo al sol a la luz
a las mujeres a las que quieres
a las muñecas que cortas que hieres
a la prudencia que mandas a tomar por saco
gira el taco
y vuelve al fútbol
el circo máximo de antaño
cuando caminabas por Roma
entre Cicerón y Augusto
rey muerto, rey puesto

en trance por Lisboa
al azar a la deriva a suertes
como Pessoa
y, durante dos horas,
no sabes lo que has hecho
dónde has estado
con quién has estado
se ha quedado todo en blanco

hoy vas camino de lo mismo
pero no tienes guita
y esto no es Lisboa
ni tú eres el príncipe de Macedonia
solo hay goles y locos que festejan
nubes que perturban — así hablaba Zaratustra
y tú amas las alturas
amas realmente las alturas
y hasta a la Humanidad
pero no soportas la pequeñez de los hombres

eres de aquellos que sabes
no hay nada que hacer
aunque vayas por caminos rectos
habrá al final noches, días en los que seguirás
las calles tortuosas
porque sabes que ese es el camino del Cielo
no el cielo de Dios, de Alá o de Cristo
sino el Cielo de Nietzsche, de Blake, de Rimbaud,
de todos los malditos

Benditos sean los malditos
benditos sean los que buscan
la luz entre las tinieblas
benditos sean los que te aman
benditos los que enloquecen
porque la locura de los que se curvan
no es locura, es dolencia.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Último cigarro

o vinho é branco a tarde cai o dia avança no vento
na boca acorda o último cigarro o poema segue o risco
a claríssima insuficiência

é este o incêndio da tarde o fim do almoço
a violência dos pássaros as crianças dormem a sesta
reclusas na sombra azul dos quartos

mãos sem sentido
arroz na folha de videira muro caiado de branco
e roseiras

gastronomias inexplicáveis contêm a vida e os pátios
aquela noite grega que não soubemos redigir
vespas bebendo da boca das torneiras

escrevo o poema que não lerás nunca
sobre a toalha de plástico da mesa suja
de azeite

a mão esquecida na vírgula acessa do cigarro
a minha solidão vincada a cotovelos no padrão da toalha
as crianças dormindo na

nitidez esquecida da telefonia

Miguel-Manso. Contra a manhã burra. Mariposa Azual. 2009


Último pitillo

el vino es blanco la tarde cae el día avanza en el viento
en la boca se despierta el último pitillo el poema sigue el trazo
la clarísima insuficiencia

es este el incendio de la tarde el fin de la comida
la violencia de los pájaros los niños duermem la siesta
recluídos en la sombra azul de los cuartos

manos sin sentido
arroz en la hoja de vid muro encalado de blanco
y rosales

gastronomías inexplicables contienen la vida y los patios
aquella noche griega que no supimos redactar
avispas bebiendo de la boca de los grifos

escribo el poema que no lerás nunca
sobre el hule de la mesa manchado
de aceite

la mano olvidada en la coma encendida del pitillo
mi soledad plegada a codos en el patrón del hule
los niños durmiendo en la

nitidez olvidada de la telefonía

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Quando alguém nos morre

Quando alguém nos morre (que morte é essa destino nosso?)
Nós — os parentes, os amigos, os inimigos,
compungidos, graves, não choramos pelo morto
Pelo que sofreu, se sofreu, pelo que ele chorou,
se chorou, pelo que ele sentiu, se sentiu, ao partir
(e partiu?)
Choramos autenticamente por nós próprios (coitados
de nós! Teremos mais precisão, Manuel Bandeira?)
Choramos autenticamente por nós próprios
(o Álvaro de Campos bem no sabía)
Choramos autenticamente por nós inautênticos
que ficamos mais pobres
e nos sentimos lesados
por nossos dereitos feridos
por nossos dereitos de posse frustrados
por nossos dereitos à protecção
por nossos dereitos à amizade
por nossos dereitos ao amor à presença
por nossos dereitos a uma vingança
por tudo quanto queríamos de quem nos morreu.
Por nossos dereitos
"burguesmente"
capitalisticamente
egoisticamente
por nossos dereitos.
Quem pensa no morto, em si, por si?
Nos seus direitos?
Nos seus direitos à vida?
Nos seus direitos à morte?
Nos seus direitos ao direito de ter direitos?
Outros direitos, direitos, direitos os dos outros.
Montámos a alfândega da dor
para cobrar direitos
impostos de lágrimas
que os outros têm de pagar quando se morre.
Não lamentamos o morto
lamentamo-nos porque o morto nos fugiu
parente, que já não quis nosso parentesco
amigo, que já não quis nossa amizade
inimigo que desprezou nossa inimizade
lamentamos a morte
sem nossa licença, isso o que falta, a nossa licença
o nosso consentimento.
Um morto é um traidor
mais que deixar de sofrer deixou de sofrer-nos
que se evadiu do nosso sadismo
e masoquistamente sofremos
o não sofrer-nos, o não sofrer
o não sofrer para nós ou por nós.
O morto é um aviso
ou um conselho que não pedimos nem queremos
e tememos
porque sempre choramos por nós, por nós
e por nossa morte.
É a nossa morte que choramos na morte dos outros.

C. T. Chão Bom, 20.I.70
António Jacinto. Poesia (1961-1975). Tarrafal interior. nóssomos. 2011


Cuando alguien se nos muere

Cuando alguien se nos muere (¿qué muerte es esa destino nuestro?)
Nosotros —los parientes, los amigos, los enemigos,
compungidos, graves, no lloramos por el muerto
Por lo que sufrió, si sufrió, por lo que él lloró,
si lloró, por lo que él sintió, si sintió, al partir
(¿y partió?)
Lloramos auténticamente por nosotros mismos (¡infelices
de nosotros! ¿Tendremos más necesidad, Manuel Bandeira?)
Lloramos auténticamente por nosotros mismos
(Álvaro de Campos de sobra lo sabía)
Lloramos auténticamente por nosotros inauténticos
que nos quedamos más pobres
y nos sentimos lesionados
por nuestros derechos heridos
por nuestros derechos de posesión frustrados
por nuestros derechos a la protección
por nuestros derechos a la amistad
por nuestros derechos al amor a la presencia
por nuestros derechos a una venganza
por todo cuanto queríamos de quien se nos ha muerto.
Por nuestros derechos
"burguesmente"
capitalistamente
egoistamente
por nuestros derechos.
¿Quién piensa en el muerto, en sí, por sí?
¿En sus derechos?
¿En sus derechos a la vida?
¿En sus derechos a la muerte?
¿En sus derechos al derecho de tener derechos?
Otros derechos, derechos, derechos los de los otros.
Montamos la aduana del dolor
para cobrar derechos
impuestos de lágrimas
que los otros tienen que pagar cuando se muere.
No nos lamentamos por el muerto
nos lamentamos porque el muerto se nos ha escapado
pariente, que no quiso más nuestro parentesco
amigo, que no quiso más nuestra amistad
enemigo que despreció nuestra enemistad
lamentamos la muerte
sin nuestro permiso, eso es lo que falta, nuestro permiso
nuestro consentimiento.
Un muerto es un traidor
más que dejar de sufrir ha dejado de sufrirnos
que se ha evadido de nuestro sadismo
y masoquistamente sufrimos
el no sufrirnos, el no sufrir
el no sufrir para nosotros o por nosotros.
El muerto es un aviso
o un consejo que no pedimos ni queremos
y tememos
porque siempre lloramos por nosotros, por nosotros
y por nuestra muerte.
Es nuestra muerte lo que lloramos en la muerte de los otros.

terça-feira, 21 de junho de 2011

o despertador... / não há problema...

o despertador
leva ao deslocamento do ombro

o deslocamento do ombro leva quase sempre
a um enorme mal estar

a reacção química
é ao cheiro
de uma manhã muito cedo

*

não há problema em oferecer café frio
às visitas

quase sempre o vinho branco
que trazem
vem quente dos motores

Nuno Moura. Os livros de Hélice Fronteira, Regina Neri,
Vasquinho Dasse, Ivo Longomel, Adraar Bous, 
Robes Rosa, Estevão Corte e Alexandre Singleton. 
"Robes Rosa. Teatro para cães". Mariposa Azual. 2000


el despertador
lleva a la dislocación del hombro

la dislocación del hombro lleva casi siempre
a un enorme mal estar

la reación química
es al olor
de una mañana muy temprano

*

no hay problema en ofrecer café frío
a las visitas

casi siempre el vino blanco
que traen
viene caliente de los motores

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Do sono da desperta Grécia

Nenhuma voz em esparta nem no oriente
se dirigira ainda aos homens do futuro
quando da acrópole de atenas péricles hierático
falou: «ainda que o declínio das coisas
todas humanas ameace sabei vós ó vindouros
que nós aqui erguemos a máis célebre e feliz cidade»
Eram palavras novas sob a mesma
abóbada celeste outrora aberta em estrelas
sobre a cabeça do emissário de argos
que aguardava o sinal da rendição de tróia
e sobre o dramaturgo sófocles roubando
aos dias desse tempo intemporais conflitos
chegados até nós na força do teatro
Apoiada na sua longilínea lança
a deusa atenas pensa ainda para nós
Pela primeira vez o homem se interroga
sem livro algum sagrado sobre a sua inteligência
e a tragédia a arte o pensamento
desvendam o destino a divindade o universo
Em busca da verdade o homem chega
às noções de justiça e liberdade
Após quatro milénios de uma sujeição servil
o homem olha os deuses face a face
e desafia o força do tirano
E nós ainda hoje nos interrogamos
a interrogação define a nossa livre condição
O desafio de antígona e de prometeu
é hoje ainda o nosso desafio
embora com um rio o tempo haja corrido
«Diz em lacedemónia ó estrangeiro
que morremos aqui para servir a lei»
«E se esta noite é uma noite do destino
bendita seja ela pois é condição da aurora»
Palavras seculares vivas ainda agora
Uma grécia secreta dorme em cada coração
na noite que precede a inevitável manhã

Ruy Belo. Transporte no tempo (1973). Em Todos os poemas II. Assírio e Alvim. 2004



Del adormecimiento de la despierta Grecia

Ninguna voz en esparta ni en el oriente
se había dirigido aún a los hombres del futuro
cuando desde la acrópolis de atenas pericles hierático
habló: «aunque la decadencia de todas las
cosas humanas amenace sabed vosotros oh venideros
que nosotros aquí levantamos la más célebre y feliz ciudad»
Eran palabras nuevas bajo la misma
bóveda celeste otrora abierta en estrellas
sobre la cabeça del emisario de argos
que aguardaba la señal de la rendición de troia
y sobre el dramaturgo sófocles robándoles
a los días de ese tiempo intemporales conflictos
llegados a nosotros en la fuerça del teatro
Apoyada en su esbelta lanza
la diosa atenas piensa aún para nosotros
Por primera vez el hombre se interroga
sin ningún libro sagrado sobre su inteligencia
y la tragedia el arte el pensamiento
desvendan el destino la divinidad el universo
En busca de la verdad el hombre llega
a las nociones de justicia y libertad
Tras cuatro milenios de sometimiento servil
el hombre mira a los dioses cara a cara
y desafía la fuerza del tirano
Y nosotros aún hoy nos interrogamos
la interrogación define nuestra libre condición
El desafío de antígona y de prometeo
es hoy todavía nuestro desafío
aunque como un río el tiempo haya corrido
«Dile en lacedemonia al extranjero
que morimos aquí para servir a la ley»
«Y si esta noche es una noche del destino
bendita sea ella pues es condición de la aurora»
Palabras seculares vivas aún ahora
Una grecia secreta duerme en cada corazón
en la noche que precede a la inevitable mañana

domingo, 5 de junho de 2011

Desencanto

Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

- Eu faço versos como quem morre.

Manuel Bandeira (Teresópolis, 1912)


Desencanto

Yo escribo versos como quien llora
De desaliento... de desencanto...
Cierra mi libro, si es que aún ahora
Ningún motivo tienes de llanto.


Mi verso es sangre. Deleite ardiente...
Pena esparcida... pesar sin razón...
Duele en las venas. Amargo y caliente,
Cae, gota a gota, del corazón.

Y en estos versos de agobio ronco
Tal de los labios la vida huyere,
Dejando en la boca sabor acre y bronco.

―Yo escribo versos como quien muere.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Em legítima defesa

Sei hoje que ninguém antes de ti
morreu profundamente para mim
Aos outros foi possível ocultá-los
na sua irredutível posição horizontal
sob a capa da terra maternal
Choramo-los imóveis e voltamos
à nossa irrequieta condição de vivos
Arrumamos os mortos e ungimo-los
são uma instituição que respeitamos
e às vezes lembramos celebramos
nos fatos que envergamos de propósito
nas lágrimas, nos gestos, nas gravatas
com flores e nas datas num horário
que apenas os mate o estritamente necessário
Mas decerto de acordo com um prévio plano
tu não só me mataste como me destruíste
as ruas os lugares onde cruzámos
os nossos olhos feitos para ver
não tanto as coisas como o nosso próprio ser
A cidade é a mesma e no entanto
há portas que não posso atravessar
sítios que me seria doloroso outra vez visitar
onde mais viva que antes tenho medo de encontrar-te
Morreste mais que todos os meus mortos
pois esses arrumei-os festejei-os
enquanto a ti preciso de matar-te
dentro do coração continuamente
pois prossegues de pé sobre este solo
onde um por um persigo os meus fantasmas
e tu és o maior de todos eles
Não suporto que nada haja mudado
que nem sequer o mais elementar dos rituais
pelo menos marcasse em tua vida o antes e o depois
forma rudimentar de morte e afinal morte
que por não teres morrido muito mais tenhas morrido
Se todos os demais morreram de uma morte de que vivo
tu matas-me não só rua por rua
nalguma qualquer esquina a qualquer hora
com coisa por coisa dessas coisas que subsistem
vivas mais que na vida vivas na imaginação
onde só afinal as coisas são
Ninguém morreu assim como morreste
pois se houvesses morrido tudo estava resolvido
Os outros estão mortos porque o estão
só tu morreste tanto que não tens ressurreição
pois vives tanto em mim como em qualquer lugar
onde antes te encontrava e te posso encontrar
e ver-te vir como quem voa ao caminhar
Todos eram mortais e tu morreste e vives sempre mais

Ruy Belo. Todos os poemas II. "Nau dos Corvos". Assírio e Alvim (2004)


En legítima defensa

Sé hoy que nadie antes que tú
había muerto profundamente para mí
A los otros fue posible ocultarlos
en su irreductible posición horizontal
bajo la capa de tierra maternal
Los lloramos inmóbiles y volvemos
a nuestra inquieta condición de vivos
Guardamos a los muertos, los ungimos
son una institución que respetamos
y a veces recordamos celebramos
en los trajes que enfundamos a propósito
en las lágrimas, los gestos, las corbatas
con flores y en las fechas en horário
que nada más los mate lo estrictamente necesario
Pero sin duda de acuerdo con un plan previo
tú no solo me has matado además me has destruído
las calles los lugares por donde cruzamos
nuestros ojos hechos para ver
no tanto las cosas como nuestro propio ser
La ciudad es la misma y sin embargo
hay puertas que no puedo atravesar
sitios que me sería doloroso otra vez visitar
donde más viva que antes tengo miedo de encontrarte
Te has muerto más que todos mis muertos
pues esos los guardé, los festejé
mientras que a ti necesito matarte
dentro del corazón continuamente
pues prosigues de pie sobre este suelo
donde uno a uno persigo a mis fantasmas
y tú eres el mayor de todos ellos
No soporto que nada haya cambiado
que ni siquiera el más elemental de los rituales
por lo menos haya marcado en tu vida el antes y el después
forma rudimentaria de muerte y al cabo muerte
que por no haber muerto mucho más hayas muerto
Si todos los demás murieron de una muerte de la que vivo
tú me matas no solo calle a calle
en una esquina cualquiera a cualquier hora
con cosa a cosa de esas cosas que subsisten
vivas más que en la vida vivas en la imaginación
donde solo al final las cosas son
Nadie ha muerto así como tú has muerto
pues si hubieras muerto todo estaba resuelto
Los otros están muertos porque lo están
solo tú has muerto tanto que no tienes resurrección
pues vives tanto en mí como en cualquier lugar
donde antes te encontraba y te puedo encontrar
y verte venir como quien vuela al caminar
Todos eran mortales y tú has muerto y vives cada vez más

terça-feira, 17 de maio de 2011

os cães gerais ladram às luas que lavram pelos desertos fora

os cães gerais ladram às luas que lavram pelos desertos fora,
mas a gota de água treme e brilha,
não uses as unhas senão nas linhas mais puras,
e a grande Constelação do Cão galga através da noite do mundo cheia de ar e de areia
e de fogo,
e não interrompe ministério nenhum nem nenhum elemento,
e tu guarda para a escrita a estrita gota de água imarcescível
contra a turva sede da matilha,
com tua linha limpa cruzas cactos, escorpiões, árduos buracos negros:
queres apenas
aquela gota viva entre as unhas,
enquanto em torno sob as luas os cães cheiram os cus uns aos outros
à procura do ouro

Herberto Helder. (Inédito) Público. P2. Sábado 14 de maio de 2011


los perros generales ladran a las lunas que labran por doquier en los desiertos,
pero la gota de agua tiembla y brilla,
no uses las uñas sino en las líneas más puras,
y la Constelación del Perro galopa a través de la noche del mundo llena de aire y de
                                                                                                                [arena
y de fuego,
y no interrumpe cometido alguno ni ningún elemento,
y tú guarda para la escritura la estricta gota de agua inmarcesible
contra la turbia sed de la jauría,
con tu línea limpia cruzas cactos, escorpiones, árduos agujeros negros:
quieres solo
aquella gota viva entre las uñas,
mientras alrededor bajo las lunas los perros se huelen el culo unos a otros
en busca del oro

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Mantém a tua mão...

Mantém a tua mão
No rigor das dunas
Andar no arame
Não é próprio de desertos

Cruza sobre mim
As pontas do vento
E orienta-as a sul
Pelo sol

Mantém a tua mão
perpendicular às dunas
E encontra o equilíbrio
No corredor do vento

A nossa conversa percorrerá oásis
Os lábios a sede

Quando saíres
Deixa encostadas
As portas do Kalahari.

Paula Tavares. Manual para amantes desesperados. Caminho. 2007


Mantén la mano

Mantén la mano
En la rigidez de las dunas
Andar en la cuerda floja
No es propio de desiertos

Cruza sobre mí
Las puntas del viento
Y oriéntalas al sur
Por el sol

Mantén la mano
perpendicular a las dunas
Y encuentra el equilibrio
En el corredor del viento

Nuestro diálogo recorrerá oasis
Los labios la sed

Cuando salgas
Deja entornadas
Las puertas del Kalahari.

domingo, 1 de maio de 2011

As mães crescem com os anos

As mães sobem uma escada até ao céu,
sobem e descem a escada longa dos filhos;
as mães olham para cima, firmam as mãos na escada
e pensam com os olhos. Ficam de pé ―morrem de pé
se for preciso― a pensar as estrelas. Cada uma delas
é um pulmão jovem, um alvéolo inviolável.
As mães crescem com os anos, tornam-se ramos
a baloiçar na escada: são perenes, persistentes
e mansas. As mães abrigam os pássaros no olhar,
tomam-nos nas mãos como oferta sagrada
e soltam-nos do alto da escada: voam, voam,
crescem contra as nuvens e são água, espuma,
exílio azul. Os filhos são os olhos das mães, aflitos
e saudáveis, à espera que floresça a flor fria
da amendoeira. Olhos que partem para regressar a si.

Dia da mãe, 2011

Nuno Higino (texto). Alberto Péssimo (ilustração).
mãe. E leva os filhos nos olhos como se os levasse pela mão
Letras&Coisas. 2011


Las madres crecen con los años

Las madres suben una escalera al cielo,
suben y bajan la escalera larga de los hijos;
las madres miran hacia arriba, afirman las manos en la escalera
y piensan con los ojos. Se quedan de pie ―mueren de pie
si es preciso― pensando las estrellas. Cada una de ellas
es un pulmón joven, un alveolo inviolable.
Las madres crecen con los años, se vuelven ramas
que se mecen en la escalera: son perennes, persistentes
y mansas. Las madres abrigan los pájaros en su mirar,
los toman en las manos como dádiva sagrada
y los sueltan de lo alto de la escalera: vuelan, vuelan,
crecen contra las nubes y son agua, espuma,
exilio azul. Los hijos son los ojos de las madres, ansiosos
y saludables, a la espera de que florezca la flor fría
del almendro. Ojos que se van para regresar a sí.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

De lo efímero

Era un mundo más diáfano.
Otro mundo distinto al verdadero,
al que llamamos mundo entre nosotros,
microcosmos perfecto
que se ofreció a mis manos
como dulce regalo a los sentidos.
Y aspiré su fragancia
con la misma vehemencia
de quien sabe el instante
feliz e irrepetible.
Nada era real, salvo ese espacio
y el milagro increible de la vida,
circunscrita a sus límites.

Duró lo que la rosa.
Porque nada que aliente en el prodigio
es inmortal,
y muere.
Mª Consuelo Fernández Suárez (1993)


Do efémero


Era um mundo mais diáfano.
Um outro mundo diferente do verdadeiro,
a que chamamos mundo entre nós,
microcosmo perfeito
que se ofereceu às minhas mãos
como doce presente aos sentidos.
E aspirei a sua fragrância
com a mesma veemência
de quem sabe o instante
feliz e irrepetível.
Nada era real, fora esse espaço
e o milagre incrível da vida,
circunscrita aos seus limites.

Durou o que a rosa.
Porque nada que alente no prodígio
e imortal,
e morre.

terça-feira, 19 de abril de 2011

o deserto é minha casa

o deserto é minha casa

com os olhos
consumo o labirinto
tenho ventos e
areias arrumadas
em demasia

tenho luas em mim
um céu negro
sem poesia

negro
e sem poesia.

passa o pássaro
―que seja uma andorinha

invoco
o seu alvoroço libertino
a fluidez do seu canto
a humidade morosa
no seu bico

o pássaro incessante
desmanchando o meu deserto
em fuga errante

no seu rumo
todas as margens

todos
os murmurios
do mar.
Ondjaki. Dentro de mim faz sul. Caminho (2010)


el desierto es mi casa

el desierto es mi casa


con los ojos
consumo el laberinto
tengo vientos y
arenas dispuestos
en demasía

tengo lunas en mí
un cielo negro
sin poesía

negro
y sin poesía.

pasa el pájaro
―que sea una golondrina

invoco
su alborozo libertino
la fluidez de su canto
la humedad demorada
en su pico

el pájaro incesante
destrozando mi desierto
en fuga errante

en su rumbo
todas las orillas

todos
los murmullos
del mar.

segunda-feira, 28 de março de 2011

o sapo pouco encantado

nos armários da cozinha os
livros misturam-se com as facas, o
machado, as ratoeiras e os venenos, as
cartas, o óleo e o azeite, algumas velhas
latas de atum. nas gavetas da cozinha, à pressa,
passa a minha vida, como um tempo todo agora
urgente a terminar

costuro à noite quando o silêncio menos
se importa com os incautos. choro noite
inteira, cortando-me entre as pernas e
sangrando sobre os tecidos e estou sempre
na cozinha, ao pé dos objectos mais dentados, os
que conhecem a pele

capaz ainda de te amar,
vou ser um imbecil se publicar este poema
para te dizer que estou no filho da puta do mesmo
lugar de sempre à tua espera. passo nisto
os anos

emigra de si quem o coração perdeu. vivo longe

admito, sou um sapo pouco encantado, se
beijado torno-me um parvinho amoroso, mas
nunca um príncipe à antiga para uma
felicidade duradoura. garanto, quando muito,
competência, mas o romantismo tem de bastar-se
às platónicas formas da minha aflita alma, essa
coisa pequenina que me habita e que as
facas não cortam
valter hugo mãe. contabilidade. primeiro livro. o inimigo cá dentro (2011)


el sapo poco encantado

en las alacenas de la cocina los
libros se mezclan con los cuchillos, el
hacha, las ratoneras y los venenos, las
cartas, el aceite de girasol y el de oliva, algunas viejas
latas de atún. en los cajones de la cocina, deprisa,
pasa mi vida, como todo un tiempo ahora
urgente que terminar

coso por la noche cuando al silencio menos
le preocupan los incautos. lloro la noche
entera, cortándome entre las piernas y
sangrando sobre los tejidos y estoy siempre
en la cocina, al pie de los objetos más dentados, los
que conocen la piel

capaz todavía de amarte,
seré un imbécil si publico este poema
para decirte que estoy en el mismo puto
lugar de siempre esperándote. me paso así
los años

emigra de sí quien ha perdido el corazón. vivo lejos

lo admito, soy un sapo poco encantado, si
me besan me convierto en un tontito amoroso, pero
nunca en un príncipe de los de antes para una
felicidad duradera. garantizo, como mucho,
competencia, pero el romanticismo tiene que bastarse
para las platónicas formas de mi afligida alma, esa
cosa pequeñita que me habita y que los
cuchillos no cortan

sexta-feira, 18 de março de 2011

[imagina/ que escrevias]

imagina
que escrevias um poema de cinco
em cinco minutos
e que morrias disso
não propriamente do coração
não propriamente das transaminases
mas de um problema de métrica
de uma rima excessiva
que crescesse dentro de ti
como uma pedra
nos rins.
José Carlos Barros. Rumor. 2011. Casa de Cacela


[imagínate/ que escribías]

imagínate
que escribías um poema de cinco
en cinco minutos
y que te morías de eso
no exactamente del corazón
no exactamente de las transaminasas
sino de un problema de métrica
de una rima excesiva
que hubiera crecido dentro de ti
como una piedra
en los riñones.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Bíblia

a bíblia. podes sempre ler a bíblia
como se te visitasses no tempo e dissesses
que és filho de um enviuvamento
qualquer.
podes sempre justificar-te perante tudo
com um efeito da linguagem,
dizer que o teu coração não fita o sol,
que as palavras dos outros não sobem
a tua casa.
porque voltas sempre
a ser tu no final da noite,
tu e o teu cérebro, tu e a tua arma
na arte exaustiva das sombras,
tu no interior do teu próprio regresso.
podes sempre viver.
Sylvia Beirute. Uma casa em Beirute (2011)


Biblia

la biblia. puedes en todo caso leer la biblia
como si te hubieras visitado en el tiempo y hubieras dicho
que eres hijo de un enviudamiento
cualquiera.
puedes en todo caso justificarte ante todo
con un efecto del lenguaje,
decir que tu corazón no mira al sol,
que las palabras de los demás no suben
a tu casa.
porque vuelves siempre
para ser tú al final de la noche,
tú y tu cerebro, tú y tu arma
en el arte exhaustivo de las sombras,
tú en el interior de tu propio regreso.
puedes en todo caso vivir.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Os sur...reais... ou qualquer coisa que seja, desta vida...

A Poesia:

Um circo, logo um trapézio;
Uma chuvinha, miudinha ―logo a correnteza, brava...
E então o jacaré, o grilo e também a borboleta.
Depois uma flor, um fruto, uma sede de qualquer coisa...
Uma mulher, uma lua cheia, vá...
E que caralho tem que ver um grilo com todas as outras entidades?
Ninguém sabe; ninguém imagina sequer. Mas o poeta sabe e para ele tudo é muito claríssimo: a lua é uma prostituta, o jacaré é o primeiro-ministro e o grilo não existe ―pois é só a metáfora daquela toda desconstrução.
....


A Prosa:

Sentado nesta doca do porto de Leixões vejo os barcos à vela e alguém dentro deles os velejando perante o assombro do gaivotal todo por ali vadiando em suas longas asas de voar. Este era o espectáculo que se me apresentava quando de repentemente se faz noite e as gaivotas já ali nem estavam mais e tão pouco os velejadores em seus barcos não velejavam também.
A coisa continua assim durante umas tantas outras madrugadas até que prontos! logo se há-se arranjar mais uns assuntitos, outras personagens que sempre aparecem...
...

(Nota: atenção!, aprender a fazer pontuação desta trapalhada toda. Haja tempo!)


A Poesia e a Prosa... putas ambas

E eis como ―como se num repentino acontecer― a lua a leva montada na garupa de um grilo para um luxuriante banquete no palácio do primeiro-ministro, lá longe, bem longe de mim. E do jacaré, pelos vistos...
Aí, lanço-me em queda-livre do trapézio e estatelo-me na doca de Leixões, sem todavia ter provado o sabor do fruto ou cheirado o perfume daquela tal falada flor.
Indiferente a tudo ―em sua total insensibilidade― a borboleta ficou preta, preta que nem a noite e voando em voos rasantes às tetas daquela mulher nenhuma...

Jonas. Nostalgia (2011)

Los sur...reales... u otra cosa cualquiera, de esta vida...

La Poesía:

Un circo, luego un trapecio;
Una llovizna, finísima ―luego el torrente, bravo...
Y entonces el caimán, el grillo y también la mariposa.
Después una flor, un fruto, una sed de cualquier cosa...
Una mujer, una luna llena, en fin...
¿Y qué coño tiene que ver un grillo con todas las demás entidades?
Nadie lo sabe; nadie se lo imagina siquiera. Pero el poeta lo sabe y para él todo está claro clarísimo: la luna es una prostituta, el caimán es el primer ministro y el grillo no existe ―pues es sólo la metáfora de toda esa desconstrucción.
....


La Prosa:

Sentado en esta dársena del puerto de Leixões veo los barcos de vela y alguien dentro de ellos veleándolos ante el asombro de todo el gavioterío que vagabundea por allí en sus largas alas de volar. Este era el espectáculo que se presentaba ante mí cuando va, coge y se hace de noche y las gaviotas como que ya ni estaban allí ni tampoco los veleadores en sus barcos veleaban para nada.
La cosa sigue así durante unas cuantas madrugadas más hasta que ¡se acabó! Ya inventará uno más asuntitos, otros personajes que siempre aparecen...
...

(Nota: ¡atención!, aprender a colocar la puntuación de todo este batiburrillo. ¡Tiempo al tiempo!)


La Poesía y la Prosa... putas ambas

Y he aquí que ―tal que en un repentino acaecer― a la luna la lleva montada a la grupa un grillo hacia un copioso banquete en el palacio del primer ministro, allá a lo lejos, muy lejos de mí. Y del caimán, por lo visto...
Entonces, me lanzo en caída libre del trapecio y me estampo en la dársena de Leixões, aunque ni había probado el sabor del fruto ni olido el perfume de aquella antedicha flor.
Indiferente a todo ―en su total insensibilidad― la mariposa se puso negra, negra que ni la noche, y volaba en vuelos rasantes sobre las tetas de aquella mujer que non era...

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Se me quiseres conhecer

Para Antero

Se me quiseres conhecer,
estuda com olhos bem de ver
esse pedaço de pau preto
que um desconhecido irmão maconde
de mãos inspiradas
talhou e trabalhou
em terras distantes lá do Norte.

Ah, essa sou eu:
órbitas vazias no desespero de possuir vida,
boca rasgada em feridas de angústia,
mãos enormes, espalmadas,
erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça,
corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis
pelos chicotes da escravatura...
Torturada e magnífica,
altiva e mística,
África da cabeça aos pés,
―ah, essa sou eu

Se quiseres compreender-me
vem debruçar-te sobre minha alma de África,
nos gemidos dos negros no cais
nos batuques frenéticos dos muchopes
na rebeldia dos machanganas
na estranha melancolia se evolando
duma canção nativa, noite dentro...

E nada mais perguntes,
se é que me queres conhecer...
Que não sou mais que um búzio de carne,
onde a revolta de África congelou
seu grito inchado de esperança.
Noémia de Sousa. Moçambique (1958)
[lido aqui]


Si me quieres conocer 

Si me quieres conocer,
estudia con ojos de ver bien
ese pedazo de madera negra
que un desconocido hermano maconde
de manos inspiradas
talló y trabajó
en tierras distantes de allá del norte.

Ah, esa soy yo:
órbitas vacías en la desesperación de poseer vida
boca rasgada en herida de angustia,
manos enormes, abiertas,
levantándose así como quien implora y amenaza,
cuerpo tatuado de heridas visibles e invisibles
por los duros látigos de la esclavitud…
Torturada y magnífica
altiva y mística,
África de la cabeza a los pies,
―ah, esa soy yo

Si quieres comprenderme
ven a asomarte sobre mi alma de África,
en los gemidos de los negros en el muelle
en los batuques frenéticos de los muchopes
en la rebeldía de los machanganas
en la extraña melodía que se eleva
de una canción nativa, noche adentro...

Y nada más me perguntes,
si es que me quieres conocer…
Que no soy más que una caracola de carne
donde la rebelión de África congeló
su grito hinchado de esperanza.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Quiromancia sanguínea

o meu público esmaga-se com amoras
e uvas de sangue nas mãos e nas manhãs
e esta chuva, que irrompe como uma catástrofe e uma náusea,
reencontra o seu sentido num passeio de fogo e dióxido e petróleo

com as marés sobre os lábios
transito para o outro lado da ponte com as luzes apagadas
e amarro-me nas gretas
com as amoras presas sobre o tempo e a chuva

lanternas de negro submersas nas candeias
abismo de pulsos e gotas de sangue
que os meus vidros cristalizam uma outra dor
- a da vida -
e esta manhã irrompe-me a boca com amoras
e tonturas

adivinho a dor por entre os dentes
e as artérias

Carlos Vinagre. Moluscos (2011)


Quiromancia sanguínea

mi público se aplasta con moras
y uvas de sangre en las manos y mañanas
y esta lluvia, que irrumpe como una catástrofe y una náusea,
reencuentra su sentido en un paseo de fuego y dióxido y petróleo

con las mareas sobre los labios
transito hacia el otro lado del puente con las luces apagadas
y me agarro en las grietas
con las moras prendidas sobre el tiempo y la lluvia

linternas de negro sumergidas en los candiles
abismo de pulsos y gotas de sangre
que mis vidrios cristalizan otro dolor
―el de la vida―
y esta mañana me irrumpe la boca con moras
y mareos

adivino el dolor por entre los dientes
y las arterias

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Do consumo do desejo

Como saber se isto é o esforço
que pede à carne o espanto do mundo,
ou se é pretensão de arte o esquecer
à porta toda uma noite a chave
para acolher cupidamente
o imprevisto o amor a rapina
na ânsia excitada do que somos
a seguir capazes de fazer?

se é este o estrénuo abandono
ao inquieto instante ou se antes
nos ilude a evasão? tão ténue
a fronteira entre a fuga e a oferta.
Tu estás do outro lado e eu não
sei como chegar e se escavar
um túnel sob o mar pode haver
maior exumação antes de ti:

tudo o que sepulta o passado –
ruínas de outros, o mudo lodo
sem que haja o modo de dragar;
e o dilatar-se o curso e não
cumprir-se o nosso encontro. Mau grado
a grande apneia o imenso hausto,
cruzam-se os destroços e entravado
o túnel cerca e serpenteia

eu devia ter tentado o voo
porém faltava-me o equilíbrio;
devia ter optado pelo arroubo
todavia não sabia preces;
não tinha a palavra de salvar,
a senha que consagra e exonera;
só tinha este corpo para entrar
e um tacto insolente para abrir.

Margarida Vale de Gato. Mulher ao mar. Mariposa Azual (2010)


Del consumo del deseo 

¿Cómo saber si esto es el esfuerzo
que pide a la carne el asombro del mundo,
o si es la pretensión del arte el olvidar
en la puerta toda una noche la llave
para acoger cupidamente
lo imprevisto el amor la rapiña
en el ansia excitada de lo que somos
después capaces de hacer?

¿si es éste el arrojado abandono
al inquieto instante o si más bien
nos engaña la evasión? tan tenue
la frontera entre la fuga y la oferta.
Tú estás del otro lado y yo no
sé cómo llegar ni si excavando
un túnel bajo el mar puede haber
mayor exhumación antes de ti:

todo lo que sepulta el pasado ―
ruinas de otros, el mudo lodo
sin que haya modo de dragar;
y el dilatarse el cauce y no
cumplirse nuestro encuentro. Pese a
la gran apnea el inmenso hálito,
se cruzan los restos y atrancado
el túnel cerca y serpentea

yo debería haber intentado el vuelo
con todo me faltaba el equilibrio;
debería haber optado por el arrobo
sin embargo no sabía plegarias;
no tenía la palabra de salvar,
la clave que consagra y exonera;
sólo tenía este cuerpo para entrar
y un tacto insolente para abrir.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Ao crepúsculo

Separada do corpo a luz
rasteja,
confunde-se com a chuva.
Arrefeceu, as gaivotas
juntam-se nos rochedos.
O gato enrola-se no sono.
Pego nun livro, de repente
uma criança tomba dos versos.
Uma criança morta.
Eugénio de Andrade. As mãos e os frutos (1948)


En el crepúsculo

Separada del cuerpo la luz
se arrastra,
se confunde con la lluvia.
Hace más frío, las gaviotas
se reúnen en las rocas.
El gato se enrosca en el sueño.
Cojo un libro, de repente
un niño cae de los versos.
Un niño muerto.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Paisagem

A névoa que desde manhã fechava
as portas todas ao rio foi-se embora.
A luz é fria: esta é agora
a minha terra, o outono.
Todas as terras são afinal as mesmas
folhas cobrindo a relva, às vezes
cintilando quando o sol rasga a névoa.

Eugénio de Andrade. As mãos e os frutos (1948)


Paisaje

La niebla que desde temprano cerraba
todas las puertas al río ya se ha ido.
La luz es fría: esta es ahora
mi tierra, el otoño.
Todas las tierras son al final las mismas
hojas cubriendo la hierba, a veces
destellando cuando el sol rasga la niebla.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Talvez Deus se tenha enganado

Queria centrar-me todo em certas palavras, ocupar o espaço
sem necessidade de coordenadas, errar o tempo
tomando-o por tempos que nunca existiram. Desejaria a sorte
dos que morreram em naufrágios e foram poupados
à habitação dos cemitérios. Nunca tive jeito para ser feliz
[nem para gritar] e pior que isso: condenado à efémera
duração dos sonhos [bastava a poesia para condenar-me]
Talvez Deus se tenha enganado: sobre o barro soprou a vida
em vez do sonho.
 Nuno Higino. Talvez Deus se tenha enganado. Letras & Coisas (2004)



Quizá Dios se haya equivocado

Quisiera centrarme todo en ciertas palabras, ocupar el espacio
sin necesidad de coordenadas, errar el tiempo
tomándolo por tiempos que nunca han existido. Desearía la suerte
de los que han muerto en naufragios y se han librado
de habitar los cementerios. Nunca se me dio bien ser feliz
[tampoco gritar] y peor que eso: condenado a la efímera
duración de los sueños [bastaba la poesía para condenarme]
Quizá Dios se haya equivocado: sobre el barro sopló vida
en vez de ensueño.

domingo, 9 de janeiro de 2011

há muito quem morra precipitadamente...

há muito quem morra precipitadamente,
ainda o ar não faísca contra o prodígio das frutas,
ninguém ainda está maduro,
uns são varados por uma bala na bôca,
outros deitam os pulmões queimados pela bôca fora,
ou são cortados ao meio por uma serra eléctrica,
há quem avance pela água e vá pela água abaixo e morra coberto de
água,
quem talhe a veia jugular frente ao espelho para ver o que faz a morte
com tanto sangue à volta dela,
são mortes académicas,
et parce que l’on ne peut pas ne pas écrire,
talvez se devesse morrer de ter escrito uma frase, ou respirada ou
irresistível ou arrancada, excedendo o mundo,
ou uma expressão de amor obscena e dôce,
então sim já se estaria pronto para as perguntas:
dói? doem? onde? como? quando?
sempre, o corpo todo, toda a memória, o que pára ou se move,
como junto a um monte de sete adjectivos de sêco e fero a informe,
onde tudo dor lhe era e causa que padeça,
eu, substantivo,
já pouco sôfrego,
já estrito, mínimo,
apanhado nos distúrbios de março a junho, e o ouro
sobe à pôlpa das nêsperas, e o sangue
sobe
para debaixo das pálpebras quando se dorme e o corpo é luminoso

Herberto Helder. Ofício Cantante. "A faca não corta o fogo". Assírio & Alvim (2009)


hay muchos que mueren precipitadamente,
aún no destella el aire contra el prodigio de las frutas,
nadie está aún maduro,
unos son traspasados por una bala en la boca,
otros echan por la boca los pulmones quemados,
o son cortados al medio por una sierra eléctrica,
hay quien avanza por el agua y se va agua abajo y se muere cubierto de
agua,
quien se corta la vena yugular frente al espejo para ver qué hace la muerte
con tanta sangre alrededor,
son muertes académicas,
et parce que l’on ne peut pas ne pas écrire,
tal vez uno se debería morir de haber escrito una frase, o respirada o
irresistible o arrancada, excediendo al mundo,
o una expresión de amor obscena y dulce,
entonces sí ya estaría listo para las preguntas:
¿duele? ¿duelen? ¿dónde? ¿cómo? ¿cuándo?
siempre, todo el cuerpo, toda la memoria, lo que se para o se mueve,
como junto a un montón de siete adjetivos de seco y fiero a informe,
donde todo le era dolor y causa que padezca,
yo, substantivo,
ya poco ávido,
ya estricto, mínimo,
atrapado en los disturbios de marzo a junio, y el oro
sube a la pulpa de los nísperos, y la sangre
sube
hacia debajo de los párpados cuando uno duerme y el cuerpo es luminoso

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A única verdade

Em louvor de Bernardim Ribeiro

A única verdade é a linha que puxo na extremidade da agulha,
ponto a ponto desenho
a paciência, refaço os gestos
das minhas avós.

Quantas coisas se passavam na cabeça das mulheres em seu estrado,
em seus olhos dobrados,
e eu que nunca tive
paciência.

Mas quem fui bem vedes que o não sou já
e pois que não tenho armas para ofender,
faço desenhos de flores brilhantes com linhas
de seda paciente,
é tudo o que posso fazer
com os olhos dobrados
na noite
que não pára de crescer.
Soledade Santos. Sob os Teus Pés a Terra. Artefacto (2010)



La única verdad
En alabanza de Bernardim Ribeiro

La única verdad es el hilo del que tiro en la extremidad de la aguja,
punto a punto dibujo
la paciencia, rehago los gestos
de mis abuelas.

Cuántas cosas pasaban por la cabeza de las mujeres en su escabel,
en sus ojos doblados,
y yo que nunca tuve
paciencia.

Pero quien fui bien veis que no lo soy ya
y como no tengo armas para ofender,
hago dibujos de flores brillantes con hilos
de seda paciente,
es todo lo que puedo hacer
con los ojos doblados
durante la noche
que no para de crecer.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Seria a terra sem as mãos

Seria a terra sem as mãos
Que a esventram

Um eterno eclipse

Ou rasgaria
Uma fenda
No vermelho véu do tempo?

Henrique Dória. Odisseus


Sería la tierra sin las manos

¿Sería la tierra sin las manos
Que la destripan
Sólo
Un eterno eclipse

O rasgaría
Una rendija
En el rojo velo del tiempo?