quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Claustrofobia

Valsa fechada de contornos poupados
Pelos metros da sala que não se alarga
De cantos subtis e contraídos, nos lados
Acentuada como se lá não estivesse ninguém.

Cada vez mais imóvel, a valsa agora
Dançando pela fundura alta, sem saída,
Onde as paredes deixam de ser brancas, a hora
É interrompida pela música que se esquece
De tocar e o passo cada vez mais convida
Os pés a ficar sem responder.

É preciso respirar, desafogar-se do medo,
Esmurrar o tapume cego dos limites,
Gozar cada toque de dedos na nota
Do piano leve, gizando lá fora,
As pautas de uma dança devota
Pela liberdade.

Fracos os que repetem:
Não fales, não grites, não te movas
Enquanto o espaço não o disser.

Sarah Virgi. Intercadências. 2011
[através de Uma casa em Beirute]


Claustrofobia

Vals cerrado de contornos ahorrados
Por los metros de la sala que no se ensancha
De esquinas sutiles y contraídas, a los lados
acentuada como si no hubiese en ella nadie.

Cada vez más inmóvil, el vals ahora
Bailando por la hondura alta, sin salida,
Donde las paredes dejan de ser blancas, la hora
Es interrumpida por la música que se olvida
De tocar y el paso cada vez más invita
A los pies a quedarse sin responder.

Es preciso respirar, desahogarse del miedo,
Aporrear la tapia ciega de los límites,
Disfrutar de cada toque de dedos en la nota
Del piano leve, marcando allá afuera,
Las pautas de una danza devota
Por la libertad.

Débiles los que repiten:
No hables, no grites, no te muevas
Mientras el espacio no lo diga.

domingo, 16 de outubro de 2011

Ecos

Em voz alta, ensaiei o teu nome:
a palavra partiu-se
Nem eco ínfimo neste quarto
quase oco de mobília

Quase um tempo de vida a dormir
a teu lado e o desapego é isto:
um eco ausente, uma ausência de nome
a repetir-se

Saber que nunca mais: reduzida
a um canto desta cama larga
o calor sufocante

Em vez: o meu pé esquerdo
cruzado em lado esquerdo
nesta cama

O teu nome num chão
nem de saudades

Ana Luísa Amaral. Se fosse um intervalo. Dom Quixote (2009)


Ecos

En voz alta, he ensayado tu nombre:
la palabra se ha roto
Ni eco ínfimo en esta habitación
casi hueca de muebles

Casi un tiempo de vida durmiendo
a tu lado y el desapego es esto:
un eco ausente, una ausencia de nombre
que se repite

Saber que nunca más: reducida
a un extremo de esta cama ancha
el calor sofocante

En cambio: mi pie izquierdo
cruzado en lado izquierdo
en esta cama

Tu nombre en un suelo
ni de añoranza

domingo, 9 de outubro de 2011

O anjo que até dá pena

Mora uma aranha na caixa do correio
a teia não me deixa ler as tuas cartas
come-me as palavras como insectos
uma a uma
até que fica só o remetente         que sou eu
e como não te posso ouvir
como não te posso falar
como não te posso ler
fico assim      apertado      sem correio
fico aqui      apartado      sem correio
e o carteiro que podia entregar em mão diz
não são registadas
apesar de me lembrar
não podem ser assinadas
e a tinta está a secar
um dia perco a cabeça       e mando o meu corpo para o céu      em correio azul
meu anjo
meu anjo analfabeto
que não escreve
nunca escreveu
e não pode ler-me a sina      porque não tenho mãos      gastei-as no apertar
porque não tenho peito
mirrou de tanto bater
porque não tenho tempo
dei-to todo
todo
para que te sentes à escrivaninha
pegues na cartilha       e aprendas a ler

João Negreiros. O cheiro da sombra das flores. Papiro Editora (2007)


El ángel que hasta da pena

Vive una araña en el buzón
la tela no me deja leer tus cartas
me come las palabras como insectos
una a una
hasta que queda sólo el remitente       que soy yo
y como no te puedo oír
como no te puedo hablar
como no te puedo leer
me quedo así       apretado       sin correo
me quedo aquí       apartado       sin correo
y el cartero que podía entregar en mano dice
no son certificadas
a pesar de acordarme
no pueden ser firmadas
y la tinta se está secando
un día pierdo la cabeza       y mando mi cuerpo al cielo       por correo urgente
mi ángel
mi ángel analfabeto
que no escribe
nunca ha escrito
y no me puede leer el destino       porque no tengo manos       las he gastado en apretar
porque no tengo pecho
se ha agostado de tanto latir
porque no tengo tiempo
te lo he dado todo
todo
para que te sientes a la escribanía
cojas la cartilla       y aprendas a ler

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O fim da aventura

À tarde sento-me no jardim do bairro
onde os lódãos acolhem melros
e enchem de sementes as inférteis
alamedas de alcatrão.

É o primeiro domingo sem ti,
em tudo igual aos outros domingos:
ruas despovoadas, grades nas montras
escuras, um pacato mundo de vizinhos
temporariamente ausentes.

Deixo-me ficar ao frio um bom bocado,
distraído pelo fútil desejo de ser
o próximo estranho que atravesse
a rua, de não ter sequer o abrigo
dum nome.

E, de súbito, ei-la que regressa,
após meses de remanso em parte
incerta: conjurei a sombra azeda
que me sussurra ao ouvido.

Cá está ela, sim, íngreme
e sedenta.

A poesia.

Rui Pires Cabral. Capitais da solidão. "Museu do amor" (2006)


El final de la aventura

Por la tarde me siento en el jardín del barrio
donde acogen mirlos los almeces
y llenan de semillas las infértiles
alamedas de alquitrán.

Es el primer domingo sin ti,
en todo igual a los demás domingos:
calles despobladas, rejas en los escaparates
oscuros, un plácido mundo de vecinos
temporalmente ausentes.

Me dejo estar al frío un buen rato,
distraído por el fútil deseo de ser
el próximo extraño que atraviese
la calle, de no tener siquiera el amparo
de un nombre.

Y, de repente, hela ahí que regresa,
tras meses de remanso en lugar
incierto: conjuré la sombra agria
que me susurra al oído.

Aquí está ella, sí, escarpada
y sedienta.

La poesía.