terça-feira, 30 de outubro de 2012

Mistério (Gonçalo M. Tavares)

Nem sempre o Mistério
              está fora do alcance da mão, como
o país estrangeiro. Por vezes ele viaja para cá,
encosta-se às decisões materiais de
                                                       um dia vulgar;
e surge, súbita e absurdamente,
no meio de uma acção do quotidiano.
Descuidados, nessa altura, chamamos ao misterio erro,
e rapidamente o eliminamos.

Gonçalo M. Tavares. 1. Relógio d'Água. Lisboa. 2004 (2.ª edição: 2011)


Mistério

No siempre está el Misterio
            fuera del alcance de la mano, como
el país extranjero. A veces viaja hacia aquí,
se arrima a las decisiones materiales de
                                                              un día vulgar;
y surge, súbita y absurdamente,
en medio de una acción cotidiana.
Por descuido, en ese momento, llamamos al misterio error,
y rápidamente lo eliminamos.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

"Nunca se sabe"

Papéis velhos com poemas: são o joio
das gavetas. Relê-los causa aversão
e uma espécie de tristeza arrependida —
são tão nossos como as recordações
e ainda vemos a circunstância precisa,
a causa, a ferida, por detrás de cada um.

Mas na altura havia esperança: é isso
que representam. Não pelas coisas que
dizem — é só descrença e fastio — mas
pela simples razão de termos querido
guardá-los. Com um pouco mais de alento,
de inspiração e trabalho, ainda se endireita
isto. Ou seja, os versos. E até a vida.

Rui Pires Cabral. Oráculos de cabeceira. Averno. Lisboa. 2009

*Título do poema tomado de: Italo Calvino, O cabaleiro inexistente [tradução de Fernanda Ribeiro e Herberto Helder], Portugália, Lisboa, 1965, p. 143



"Nunca se sabe"

Papeles viejos con poemas: son la paja
de las gavetas. Releerlos causa aversión
y una especie de tristeza arrepentida —
son tan nuestros como los recuerdos
y aún vemos la circunstancia precisa,
la causa, la herida, por detrás de cada uno.

Pero entonces había esperanza: eso es
lo que representan. No por las cosas que
dicen —sólo descreimiento y hastío— sino
por la simple razón de que hayamos querido
guardarlos. Con un poco más de aliento,
de inspiración y trabajo, todavía se arregla
esto. O sea, los versos. Y hasta la vida.