domingo, 9 de janeiro de 2011

há muito quem morra precipitadamente...

há muito quem morra precipitadamente,
ainda o ar não faísca contra o prodígio das frutas,
ninguém ainda está maduro,
uns são varados por uma bala na bôca,
outros deitam os pulmões queimados pela bôca fora,
ou são cortados ao meio por uma serra eléctrica,
há quem avance pela água e vá pela água abaixo e morra coberto de
água,
quem talhe a veia jugular frente ao espelho para ver o que faz a morte
com tanto sangue à volta dela,
são mortes académicas,
et parce que l’on ne peut pas ne pas écrire,
talvez se devesse morrer de ter escrito uma frase, ou respirada ou
irresistível ou arrancada, excedendo o mundo,
ou uma expressão de amor obscena e dôce,
então sim já se estaria pronto para as perguntas:
dói? doem? onde? como? quando?
sempre, o corpo todo, toda a memória, o que pára ou se move,
como junto a um monte de sete adjectivos de sêco e fero a informe,
onde tudo dor lhe era e causa que padeça,
eu, substantivo,
já pouco sôfrego,
já estrito, mínimo,
apanhado nos distúrbios de março a junho, e o ouro
sobe à pôlpa das nêsperas, e o sangue
sobe
para debaixo das pálpebras quando se dorme e o corpo é luminoso

Herberto Helder. Ofício Cantante. "A faca não corta o fogo". Assírio & Alvim (2009)


hay muchos que mueren precipitadamente,
aún no destella el aire contra el prodigio de las frutas,
nadie está aún maduro,
unos son traspasados por una bala en la boca,
otros echan por la boca los pulmones quemados,
o son cortados al medio por una sierra eléctrica,
hay quien avanza por el agua y se va agua abajo y se muere cubierto de
agua,
quien se corta la vena yugular frente al espejo para ver qué hace la muerte
con tanta sangre alrededor,
son muertes académicas,
et parce que l’on ne peut pas ne pas écrire,
tal vez uno se debería morir de haber escrito una frase, o respirada o
irresistible o arrancada, excediendo al mundo,
o una expresión de amor obscena y dulce,
entonces sí ya estaría listo para las preguntas:
¿duele? ¿duelen? ¿dónde? ¿cómo? ¿cuándo?
siempre, todo el cuerpo, toda la memoria, lo que se para o se mueve,
como junto a un montón de siete adjetivos de seco y fiero a informe,
donde todo le era dolor y causa que padezca,
yo, substantivo,
ya poco ávido,
ya estricto, mínimo,
atrapado en los disturbios de marzo a junio, y el oro
sube a la pulpa de los nísperos, y la sangre
sube
hacia debajo de los párpados cuando uno duerme y el cuerpo es luminoso

2 comentários:

Albino M. disse...

Versão original: boca, com acento?
Doce, com acento?

Sun Iou Miou disse...

É assim mesmo, Albino. E "sêco" e "pôlpa" ainda. A mim também me desconcertou, mas é Herberto Helder. Algum significado deverá ter... ou não.

O que não soube (e reconheço aí o meu fracasso) foi transmitir isso na versão em castelhano.