domingo, 17 de junho de 2012

[Os Rurais]

Primeiro treinamos o disfarce de sermos cosmopolitas
e depois procuramos livrar-nos dos disfarces
de fazer de conta que o somos: tiramos as máscaras
com a ilusão de que assim nos disfarçamos melhor
e de que assim nos é possível fazer de conta
que não trazemos merda agarrada aos sapatos.
Nas grandes cidades chegávamos a dar-nos

bem: Paris ou Copenhaga não são muito
diferentes de uma aldeia de montanha
no que respeita ao modo como os outros nos olham
e olhamos os outros. Quer dizer: a cumplicidade
ou a distância que entre as pessoas se estabelece
nos pequenos lugares não é substancialmente
diferente da que o anonimato proporciona
nas praças e nos largos das urbes. E ser rural

chegava a deixar de ser esse peso de falarmos
ou fazermos um gesto e descobrir-se
à distância a pesada pronúncia ou o cheiro
da urze entranhado na pele. O problema
são os espaços sociais de média dimensão:
um jantar com amigos de amigos num restaurante
caro ou uma conferência num anfiteatro
sobre a imortalidade da alma: o nosso inglês
mesmo que seja perfeito vê-se que foi aprendido
a custo nos livros de um liceu
da província; os nossos fatos têm sempre
desusados vincos e parece que foram
feitos para alguém um pouco mais gordo
ou um pouco mais magro do que nós; os nossos
argumentos filosóficos descambam inevitavelmente
no senso comum e risível dos provérbios;
e nunca acertamos os talheres ou os copos
com as protocoladas necessidades deles.

Compreendemos um dia que não adianta
colocar uma máscara e outra máscara
sobre o rosto ou retirá-las todas na ilusão
de que assim nos é mais fácil disfarçar
a ruralidade que somos como se não pertencêssemos
ainda e para sempre aos lugares afastados
onde nascemos e onde ficámos mesmo quando de
lá saímos muito cedo. E portanto resta-nos

ser rurais e trazer a merda agarrada
aos sapatos com a arrogância e a displicência
com que os cosmopolitas à mesa manobram
os talheres bastando-nos a nós o disfarce
de não sentirmos vergonha quando não sabemos
se é de faca e garfo ou com uma colherzinha
de entre tantas facas e tantos garfos e tantas colherzinhas
que nos devemos meter ao petit gateau de chocolate.

Claro que não é isto que pode salvar-nos.
Mas a partir de certa altura já quase
nos basta ter uma máscara que nos disfarce
até sermos exactamente o que somos.

José Carlos Barros. Casa de Cacela. 2012


[Los Rurales]

Primero entrenamos el disfraz de ser cosmopolitas
y después procuramos librarnos de los disfraces
de hacer como si lo fuésemos: nos quitamos las máscaras
con la ilusión de que así nos disfrazamos mejor
y de que así nos es posible hacer como si no
llevásemos mierda pegada en los zapatos.
En las grandes ciudades llegábamos a estar

a gusto: Paris o Copenhague no son muy
diferentes de una aldea de montaña
en lo que respecta al modo en que los demás nos miran
y miramos a los demás. Es decir: la complicidad
o la distancia que entre las personas se establece
en los pequeños lugares no es sustancialmente
diferente de la que el anonimato proporciona
en las glorietas y plazas de las urbes. Y ser rural

llegaba a dejar de ser ese peso de hablar
o hacer un gesto y que se descubriera
a distancia el pesado acento o el olor
del brezo entrañado en la piel. El problema
son los espacios sociales de media dimensión:
una cena con amigos de amigos en un restaurante
caro o una conferencia en un anfiteatro
sobre la inmortalidad del alma: nuestro inglés
aunque sea perfecto se ve que fue aprendido
a pulso en los libros de un instituto
de provincias; nuestros trajes tienen siempre
pliegues pasados de moda y parece que fueron
hechos para alguien un poco más gordo
o un poco más flaco que nosotros; nuestros
argumentos filosóficos degeneran inevitablemente
en el sentido común y risible de los proverbios;
y nunca casamos los cubiertos o los vasos
con las protocoladas necesidades de estos.

Comprendemos un día que de nada sirve
colocar una máscara y otra máscara
sobre el rostro o quitarlas todas en la ilusión
de que así nos es más fácil disimular
la ruralidad que somos como si no perteneciéramos
todavía y para siempre a los lugares alejados
en los que nacimos y continuamos incluso cuando de
allí salimos muy temprano. Y por tanto solo nos queda

ser rurales y llevar la mierda pegada
a los zapatos con la arrogancia y la displicencia
con la que los cosmopolitas a la mesa manejan
los cubiertos bastándonos a nosotros el disfraz
de no sentir vergüenza cuando no sabemos
si es con cuchillo y tenedor o con una cucharilla
de entre tantos cuchillos y tantos tenedores y tantas cucharillas
con lo que nos debemos aplicar al petit gateau de chocolate.

Claro que no es esto lo que nos puede salvar.
Pero a partir de cierta altura ya casi
nos basta tener una máscara que nos disfrace
hasta ser exactamente lo que somos.

3 comentários:

jcb disse...

Obrigado. E obrigado também por ter escolhido este. E obrigado ainda pela belíssima tradução.

Sun Iou Miou disse...

Resulta difícil escolher na Casa de Cacela, José Carlos, pois ainda não vi lá um poema, um desenho de que não gostasse. Mas este, "Os Rurais", é muito especial, para quem fez o caminho inverso, da cidade à aldeia, onde aprendeu que trazer a merda agarrada aos sapatos não é grave (se a gente se lembra de limpá-los antes de entrar em casa), que o cheiro da urze é delicadamente colorido, e que desaprendeu as protocoladas necessidades de facas, garfos e colherzinhas.

Obrigada eu

La queue bleue disse...

Sun, havia tempo que nom lia aqui e justo hoje precisamente este poeminha. Havia tempo que nom me coincidia ter umha coincidência destas em que se anda com umha história na cabeça e de repente topamos com algo relacionado com a dita história diante dos focinhos. Por isso, graças :-)
Ah, e, ao fio do teu comentário, onte, a ler a umha revista qualquer numha pastelaria qualquer de umha vila minhota qualquer, também havia umha reportagem sobre as pessoas que, a causa da tam trilhada crise, se mudaram ao campo. Digo, polo da coincidência, outra vez.
Espero muito que vaia tudo bem.