domingo, 24 de novembro de 2013

Noite e dia

E então a noite caiu, para que não se falasse
do cair da noite. A noite caiu tão fria como as
últimas noites que caíram, neste princípio de
inverno, e ninguém pôs um colchão por baixo
dela para que a noite não se magoasse, ao cair.
A noite limitou-se a cair, e com ela caiu o céu
sem lua, com todas as estrelas do universo a
caírem com ela. Só os olhos não caíram, porque
para verem o céu e as estrelas que o enchiam
tiveram de se levantar. E foi preciso falar
do cair da noite para que os olhos tomassem
a direcção do céu, e descobrissem tudo o que
havia no céu sem lua. "Deixem cair a noite",
disse alguém. E logo alguém pediu que o
dia se levantasse, como se uma coisa estivesse
ligada à outra. Então, o dia levantou-se da
noite em que caiu; e a noite caiu sobre o dia
que se levantava, para que a sua queda fosse
amparada pelo colchão do dia, e as estrelas
tivessem onde pousar, à medida que caíam.

Nuno Júdice. As coisas mais simples. Don Quixote. Lisboa. 2007

Noche y día

Y entonces cayó la noche, para que no se hablara
del caer de la noche. Cayó la noche tan fría como las
últimas noches que habían caído, en este principio de
invierno, y nadie le puso un colchón debajo
para que la noche no se lastimara, al caer.
La noche se limitó a caer, y con ella cayó el cielo
sin luna, con todas las estrellas del universo
cayendo con ella. Todo cayó salvo los ojos, porque
para ver el cielo y las estrellas que lo llenaban
tuvieron que levantarse. Y fue necesario hablar
del caer de la noche para que los ojos tomaran
la dirección del cielo, y descubrieran todo lo que
había en el cielo sin luna. "Dejad que caiga la noche",
dijo alguien. Y luego alguien pidió que el
día se levantara, como si una cosa estuviera
unida a la otra. Entonces, el día se levantó de la
noche en que cayó; y la noche cayó sobre el día
que se levantaba, para que su caída fuera
amparada por el colchón del día, y las estrellas
tuvieran dónde posarse, a medida que caían.

sábado, 23 de novembro de 2013

Fado singer

My skin is pumiced to a fault
I am down to hair-roots, down to fibre filters
Of the raw tobacco nerve
Your net is spun of sitar strings
To hold the griefs of gods: I wander long
In tear vaults of the sublime
Queen of night torments, you strain
Sutures of song to bear imposition of the rites
Of living and death. You
Pluck strange dirges from the storm
Sift rare stones from ashes of the moon, and rise
Night errands to the throne of anguish
Oh there is too much crush of petals
For perfume, too heavy tread of air on mothwing
For a cup of rainbow dust
Too much pain, oh midwife at the cry
Of severance, fingers at the cosmic cord, too vast
The pains of easters for a hint of the eternal
I would be free of your tyranny, free
From sudden plunges of the flesh in earthquake
Beyond all subsidence of sense
I would be free from headlong rides
In rock reams and volcanic veins, drawn by dark steeds
On grey melodic reins.

by Wole Soyinka for Amália Rodrigues in 1988


Fadista

A minha pele está puída em demasia
De mim restam apenas as raízes capilares, os filtros fibrosos
Do nervo do tabaco puro
A tua rede está urdida com cordas de sitar
Para conter as mágoas dos deuses: muito deambulei
Em abóbadas de lágrimas da sublime
Rainha dos tormentos nocturnos, tu tensas
suturas de música para suportar a imposição dos ritos
De vivos e mortos. Tu
Arrancas prantos estranhos da trovoada
Peneiras pedras raras das cinzas lunares, e elevas
Recados nocturnos para o trono da angústia
Ai, há pétalas de mais machucadas
Para perfume, pesa de mais o passo do ar na asa da mariposa
Para uma xícara de pó de arco-íris
Dor de mais, ai, parteira no grito
Da ruptura, dedilha no cordão cósmico, imensas de mais
As dores pascais para um triz do eterno
Livrar-me-ia da tua tirania, livrar-me-ia
De súbitos mergulhos da carne no terremoto
Além de todo o abatimento de juízo
Livrar-me-ia de passeios precipitados
Em resmas de rochas e veias vulcânicas, puxado por corcéis escuros
sobre melódicas rédeas cinzentas.

escrito por Wole Soyinka para Amália Rodrigues em 1988
tradução de María Alonso Seisdedos em De voz dada, Amália e os poetas. Porta XIII. 2013