sábado, 30 de outubro de 2010

O parto de uma pedra...

O parto de uma pedra
é realmente espectáculo
para uma vida inteira.

E há ainda o sol
e a sua vergonhosa incompatibilidade
com a lua.

Mas hoje estou triste como se fosse poeta
e é à sombra do vento que me acolho
puxando para os ombros
a nudez da paisagem.

Vêm os violinos
de muito longe
ouvir a neve.

Artur do Cruzeiro Seixas. Eu falo em chamas (1986)

O parto de uma pedra

El parto de una piedra
es realmente espectáculo
para una vida entera.

Y está también el sol
y su vergonzosa incompatibilidad
con la luna.

Pero hoy estoy triste como si fuese poeta
y a la sombra del viento me acojo
atrayendo hacia los hombros
la desnudez del paisaje.

Vienen los violines
de muy lejos
a oír la nieve.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

A verdade é ser verosímil

Não sabemos quando somos
verosímeis.
Pequenos actos
escapam à verdade recorrente
e quando os gestos os tentam acompanhar
dizem outra coisa de nós mesmos.
Nada que não se esperasse e não se tente evitar ―
um mar de calmaria
um barco à deriva já dentro do porto
a certeza de que escapamos por pouco à dor maior.
(leva a maré a bom porto
disseram todos na despedida lenta
firmes no seu posto raso
maré vaza.)

Muitos de nós ficaram abandonados por entre as margens do mar
anos a fio ―
na esperança muita de os recuperarmos
dragamos o fundo da água pouco profunda.

Não aparecem sempre, os destroços dos actos
em cada memória flutuam
e em cada sonho se transformam
desejam o que antes desejámos
não se conformam
desaparecem levados.

É a sua maneira de aparecer
não sabemos quem somos
a verdade é ser verosímil
ressurreição é palavra suficiente
nada que não se esperasse
diga-se que escapamos por pouco

Sérgio Godinho. O sangue por um fio (2009)


La verdad es ser verosímil

No sabemos cuándo somos
verosímiles.
Pequeños actos
se libran de la verdad recurrente
y cuando los gestos intentan seguirlos
dicen otra cosa de nosotros mismos.
Nada que no se haya esperado e intentado evitar ―
un mar en calma
un barco a la deriva ya dentro del puerto
la certeza de que nos hemos librado por poco del dolor mayor.
(lleva la marea a buen puerto
dijeron todos en la despedida lenta
firmes en su puesto raso
marea desagua.)

Muchos de nosotros se quedaron abandonados por entre las orillas del mar
durante años ―
con la esperanza mucha de recuperarlos
dragamos el fondo del agua poco profunda.

No aparecen siempre, los destrozos de los actos
en cada recuerdo fluctúan
y en cada ensueño se transforman
desean lo que antes hemos deseado
no se conforman
desaparecen arrastrados.

Es su manera de aparecer
no sabemos quiénes somos
la verdad es ser verosímil
resurrección es palabra suficiente
nada que no se haya esperado
dígase que nos libramos por poco.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Palavras

Sentas-te ainda à mesa ― escreves
palavras tão compactas, tão opacas
como a luz que te cega. Cada dia
promete o infinito em meia dúzia
de palavras ― o amor,
a vida, o tempo, a morte, a esperança,
o coração. Repete-as,
repete-as muitas vezes em voz alta
e escuta a sua música
até não quererem dizer nada.

Fernando Pinto do Amaral. Poemas Escolhidos (1990-2007)


Palabras

Te sientas aún a la mesa ― escribes
palabras tan compactas, tan opacas
como la luz que te ciega. Cada día
promete el infinito en media docena
de palabras ― el amor,
la vida, el tiempo, la muerte, la esperanza,
el corazón. Repítelas,
repítelas muchas veces en voz alta
y escucha su música
hasta que no quieran decir nada.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

o teu sono anoiteceu mais que a noite...

o teu sono anoiteceu mais que a noite
e hei-de escrever-te sempre sem que nunca
te escreva sei as palavras que fechaste
nos olhos mas não sei as letras de as dizer
ensina-me de novo se ensinares-me for
ir ter contigo ao teu sorriso ensina-me
a nascer para onde dormes que me perco
tantas vezes numa noite demasiado pequena
para o teu sono num silêncio demasiado fundo
dormes e tento levantar a pedra que te
cobre maior que a noite o peso da pedra que
te cobre e tento encontrar-te mais uma vez
nas palavras que te dizem só para mim
o teu sono anoiteceu mais que as mortes
que posso suportar e hei-de escrever-te
sempre e mais uma vez sozinho nesta noite

José Luís Peixoto. A Criança Em Ruínas (2007)


tu sueño ha anochecido más que la noche...

tu sueño ha anochecido más que la noche
y te escribiré siempre sin que nunca
te escriba sé las palabras que cerraste
en los ojos pero no sé las letras de decirlas
enséñame de nuevo si enseñarme es
ir a tu encuentro a tu sonrisa enséñame
a nacer hacia donde duermes que me pierdo
tantas veces en una noche demasiado pequeña
para tu sueño en un silencio demasiado hondo
duermes e intento levantar la piedra que te
cubre mayor que la noche el peso de la piedra que
te cubre e intento encontrarte una vez más
en las palabras que te dicen sólo para mí
tu sueño ha anochecido más que las muertes
que puedo soportar y te escribiré
siempre y una vez más solo en esta noche

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Para vivenciar nadas

para e com chiara, bea, valerie

borboleta é um ser irrequieto.
para vestes usa pólen.
tem um cheiro colorido
e babas de amizade.
descola por ventos
e facilmente aterriza em sonhos.
borboleta tem correspondência directa
com a palavra alma.
para existir usa liberdades.
desconhece o som da tristeza
embora saiba afogá-la.
usa com afinidades
o palco da natureza.
nega maquilhagens isentas
de materiais cósmicos. como digo:
pó-de-lua, lápis solar
castanho-raiz, cinzento-nuvem.
borboleta dispõe de intimidades
com arcos íris
a ponto de cócegas mútuas.
para beijar amigos e vidas ela usa olhos.
borboleta é um ser
de misteriosos nadas.

Ondjaki. Há prendisajens com o xão (O segredo 
húmido da lesma e outras descoisas)


Para vivenciar nadas
para y con chiara, bea, valerie

mariposa es un ser irrequieto.
de hábito usa polen.
tiene un olor colorido
y babas de amistad.
despega por vientos
y fácilmente aterriza en sueños.
mariposa tiene correspondencia directa
con la palabra alma.
para existir usa libertades.
desconoce el sonido de la tristeza
aunque sepa ahogarla.
usa con afinidades
el escenario de la naturaleza.
niega maquillajes exentos
de materiales cósmicos. como digo:
polvo de luna, lapiz solar
castaño raíz, gris nube.
mariposa dispone de intimidades
con arcoíris
al punto de cosquillas mutuas.
para besar amigos y vidas ella usa ojos.
mariposa es un ser
de misteriosos nadas.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Regurgitações

Sei que há jovens à espera do autocarro até ao fim do dia,
Cheios de si e de sonhos rebeldes e inocentes.
Sei que ainda há Sol e eu bebo-o desesperadamente
Porque sei que este é sempre o último dia.
Tenho a cor da morte na pele e só a luz a consegue esconder,
Só os gritos de adolescentes ansiando por uma boca ávida
Atrás do muro, uma mão emancipadora
Que lhe encontre a alma em chamas pelo futuro adentro,
Me dão a ilusão de outra cor.
Fecho os olhos e o meu sangue vermelho nas pálpebras,
Ainda, quente o dia e o verde persiste.
Sei de tractores além do monte, de cortiça,
Além do tempo que me separa da infância,
Aceleram, enterram os dentes metálicos e rasgam-me em tantos,
As cores por mim, um prisma.
Vem-me outro dia luminoso, apesar de cinzento,
À beira de um rio de outra vida,
Com adolescentes, uma mesma vontade para a vida,
Todos os caminhos abertos, hoje a tornar os pais em avós,
Os sonhos em cabelos brancos
E as traições em fugas à vida que sem querer se escolheu.
Lembro-me nesta cor, que nunca fui à Noruega
E isso dói-me como não ter deus, por minha culpa,
Das escolhas que me foram impostas,
Tive que ser e dentro de mim
Ainda há carroças com gente muito queimada pelo Sol,
Um frio de pobreza e paredes muito grossas de granito
Com cheiro a fumo de dez décadas.
Os cães ladram, mas estão no máximo em Tromsø
E eu sempre preferi Thor a Cristo, quando era da idade da mitologia.
Sintoma da Serra de Orelhão que recorta o horizonte
Como as Montanhas Místicas e afinal
Lá vive gente, com cães, com jovens que regressam,
Partem, todos os dias para nunca mais,
Enquanto houver Sol e eu rasgado pelo som do trabalho árduo
E o vermelho dos meus olhos fechados,
Que se abrem para o verde de uma louva-a-deus.
O Sol não se põe, é a minha alma que se extingue.

21.10.2010, Torre de Dona Chama.


Regurgitaciones

Sé que hay jóvenes esperando el autobús al final del día,
Engreídos y de sueños rebeldes e inocentes.
Sé que aún hay Sol y yo me lo bebo desesperadamente
Porque sé que este es siempre el último día.
Tengo el color de la muerte en la piel y sólo la luz consigue esconderlo,
Sólo los gritos de adolescentes ansiando una boca ávida
Detrás del muro, una mano emancipadora
Que le encuentre el alma en llamas a lo largo del futuro,
Me dan la ilusión de otro color.
Cierro los ojos y mi sangre roja en los párpados,
Todavía, caliente el día y el verde persiste.
Sé de tractores más allá del monte, de corcho,
Más allá del tiempo que me separa de la infancia,
Aceleran, entierran los dientes metálicos y me rasgan en tantos,
Los colores por mí, un prisma.
Me viene otro día luminoso, a pesar de grisáceo,
A la orilla de un río de otra vida,
Con adolescentes, unas mismas ganas para la vida,
Todos los caminos abiertos, hoy volviendo a los padres abuelos,
A los sueños, cabellos blancos
Y a las traiciones, huídas de la vida que sin querer se eligió.
Me recuerdo en este color, que nunca fui a Noruega
Y eso me duele como no tener dios, por mi culpa,
De las elecciones que me fueron impuestas,
Tuve que ser y dentro de mí
Aún hay carros con gente muy quemada por el Sol,
Un frío de pobreza y paredes muy gruesas de granito
Con olor a humo de diez décadas.
Los perros ladran, pero están al máximo en Tromsø
Y yo siempre he preferido Thor a Cristo, cuando era de la edad de la mitología.
Síntoma de la Sierra de Orelhão que recorta el horizonte
Como las Montañas Místicas y al cabo
Allí vive gente, con perros, con jóvenes que regresan,
Parten, todos los días para nunca jamás,
Mientras haya Sol y yo rasgado por el sonido del trabajo arduo
Y el rojo de mis ojos cerrados,
Que se abren para el verde de una santateresa.
El Sol no se pone, es mi alma lo que se extingue.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Que dizer...

Que dizer destas sombras
encostadas na noite às árvores e à névoa?
Que dizer-lhes de nós,
se as vemos como que iniciar
uma conversa todavia nossa?
Que algures no mundo ou junto delas
os amantes se tocam, se procuram?
Que a morte continua, como os homens,
a matar? Que as guerras e os massacres
prosseguem incontáveis? Que crianças
continuam a nascer em gritos de surpresa?
Que as folhas caem, ervas reverdecem,
o vento sopra as vezes, e que o sol
brilha no que, movendo-se, ou quieto,
não possa recusar-se a reflecti-lo?
E que sombras ilusórias, pressupostas,
sonhando entre o arvoredo o que não sabem
ser tão diverso e tão igual, não contam
entre o que existe e não existe? O que
dizer-lhes ou dizer? Só isto, ou nada?

Abril 70

Jorge de Sena. Exorcismos (1972)


Qué decir...

¿Qué decir de estas sombras
arrimadas de noche a los árboles y a la niebla?
¿Qué decirles de nosotros,
si las vemos como iniciando
una plática todavía nuestra?
¿Que en algún lugar del mundo o junto a ellas
los amantes se tocan y se buscan?
¿Que la muerte continúa, como los hombres,
matando? ¿Que las guerras y las masacres
prosiguen incontables? ¿Que niños
continúan naciendo en gritos de sorpresa?
¿Que las hojas caen, hierbas reverdecen,
el viento sopla a veces, y que el sol
brilla en lo que, moviéndose, o quieto,
no se pueda negar a reflejarlo?
¿Y que sombras ilusorias, presupuestas,
soñando entre la arboleda lo que no saben
que es tan diverso y tan igual, no cuentan
entre lo que existe y no existe? ¿Qué
decirles o decir? ¿Sólo esto, o nada?

Abril 70

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Calculo uma doença...

Calculo uma doença difícil e definitiva
Um sono que não se apaga no sono, ou melhor,
Um verso parado no meio de um poema.
Imagino o poeta sem dormir e parado como um verso
No meio do poema. Imagino o poema sem dormir.
Tento explicá-lo, compará-lo a Noé na arca
Saudoso de colocar de novo os pés descalços sobre a terra.
Penso que os animais saem de dentro das palavras
E vêm ter comigo
Que querem ter um nome como no princípio
Que querem beber.
Tu não sabes como te chamas, não sabes o nome das plantas
Esqueceste o nome dos teus irmãos
E nem mesmo a tua mãe te traz uma palavra à boca.
Faço a inclinação de quem encosta o rosto ao focinho dos bichos
Com saudades do calor de uma voz que chama.
Nem mesmo eu sei dizer que terra firme lhes peço
Que alicerces fundos cavam quando pousam
As patas muito mansas sobre mim.

Daniel Faria. Dos Líquidos (2000)


Calculo una enfermedad difícil y definitiva
Un sueño que no se borra en el sueño, o mejor,
Un verso parado a mitad de un poema.
Me imagino al poeta sin dormir y parado como un verso
A mitad del poema. Me imagino el poema sin dormir.
Intento explicarlo, compararlo a Noé en el arca
Deseando colocar de nuevo los pies descalzos sobre la tierra.
Pienso que los animales salen de dentro de las palabras
Y vienen a mí
Que quieren tener un nombre como al principio
Que quieren beber.
Tú no sabes cómo te llamas, no sabes el nombre de las plantas
Se te ha olvidado el nombre de tus hermanos
Y ni siquiera tu madre te trae una palabra a la boca.
Hago la inclinación de quien acerca el rostro al hocico de los bichos
Con nostalgia del calor de una voz que llama.
Ni siquiera yo sé decir qué tierra firme les pido
Qué cimientos hondos cavan cuando posan
Las patas muy mansas sobre mí.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Navegámos para Oriente...

Navegámos para Oriente ―
A longa costa
Era de um verde espesso e sonolento

Um verde imóvel sob o nenhum vento
Até à branca praia cor de rosas
Tocada pelas águas transparentes

Então surgiram as ilhas luminosas
De um azul tão puro e tão violento
Que excedia o fulgor do firmamento
Navegado por garças milagrosas

E extinguiram-se em nós memória e tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen. As Ilhas (1977)


Navegamos hacia Oriente...

Navegamos hacia Oriente ―
La larga costa
Era de un verde espeso y soñoliento

Un verde inmóvil bajo ningún viento
Hasta la blanca playa color de rosas
Tocada por las aguas transparentes

Ahí surgieron las islas luminosas
De un azul tan puro y tan violento
Que excedía el fulgor del firmamento
Navegado por garzas milagrosas

Y en nosotros se extinguió memoria y tiempo

sábado, 16 de outubro de 2010

Não há

Não há nada mais vão
e mais só
que os mastros despidos
dos barcos perdidos
em portos desertos
chorando a ausência do mar
                      e das brumas
sonhando o sol o sal e o vento
quilhas cantando a imanência
                      das águas
cavalgando potros com asas de espuma

E no frio fino de um dia cinzento
voa sobre o cais o grito das gaivotas



No hay

No hay nada más vano
y más solo
que los mástiles desnudos
de los barcos perdidos
en puertos desiertos
llorando la ausencia del mar
                       y las brumas
soñando el sol la sal y el viento
quillas cantando la inmanencia
                      de las aguas
cabalgando potros con alas de espuma

Y en el frío fino de un día agrisado
vuela sobre el muelle la voz de las gaviotas

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

De que serviu...

De que serviu ir correr mundo,
arrastar, de cidade em cidade, um amor
que pesava mais do que mil malas; mostrar
a mil homens o teu nome escrito em mil
alfabetos e uma estampa do teu rosto
que eu julgava feliz? De que me serviu

recusar esses mil homens, e os outros mil
que fizeram de tudo para eu parar, mil
vezes me penteando as pregas do vestido
cansado de viagens, ou dizendo o seu nome
tão bonito em mil línguas que eu nunca
entenderia? Porque era apenas atrás de ti

que eu corria o mundo, era com a tua voz
nos meus ouvidos que eu arrastava o fardo
do amor de cidade em cidade, o teu nome
nos meus lábios de cidade em cidade, o teu
rosto nos meus olhos durante toda a viagem,

mas tu partias sempre na véspera de eu chegar.

Maria do Rosário Pedreira. Nenhum nome depois (2004)


¿De qué ha servido...?

¿De qué ha servido ir a correr mundo,
arrastrar, de ciudad en ciudad, un amor
que pesaba más que mil maletas; mostrarles
a mil hombres tu nombre escrito en mil
alfabetos y una estampa de tu rostro
que me parecía feliz? ¿De qué me ha servido

rechazar a esos mil hombres, y a los otros mil
que hicieron de todo por que me parase, mil
veces peinándome los pliegues del vestido
cansado de viajes, o diciendo su nombre
tan bonito en mil lenguas que yo nunca
entendería? Porque sólo por ti

recorría yo el mundo, con tu voz
en mis oídos arrastraba el fardo
del amor de ciudad en ciudad, tu nombre
en mis labios de ciudad en ciudad, tu
rostro en mis ojos durante todo el viaje,

mas tú partías sempre la víspera de mi llegada.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Um Fado: Palavras Minhas

Palavras que disseste e já não dizes,
palavras como um sol que me queimava,
olhos loucos de um vento que soprava
em olhos que eram meus, e mais felizes.

Palavras que disseste e que diziam
segredos que eram lentas madrugadas,
promessas imperfeitas, murmuradas
enquanto os nossos beijos permitiam.

Palavras que dizias, sem sentido,
sem as quereres, mas só porque eram elas
que traziam a calma das estrelas
à noite que assomava ao meu ouvido...

Palavras que não dizes, nem são tuas,
que morreram, que em ti já não existem
— que são minhas, só minhas, pois persistem
na memória que arrasto pelas ruas.

Pedro Tamen, Tábua das Matérias

Un fado: palabras mías

Palabras que has dicho y ya no dices,
palabras como un sol que me quemaba,
ojos locos de un viento que soplaba
en ojos que eran míos, más felices.

Palabras que has dicho y que decían
secretos que eran lentas madrugadas,
promesas imperfectas, murmuradas
en tanto nuestros besos permitían.

Palabras que decías, sin sentido,
sin quererlas, nada más porque eran ellas
las que traían paz de las estrellas
a la noche que asomaba a mi oído...

Palabras que no dices, ni son tuyas,
que han muerto, que en ti ya no existen
—que son mías, sólo mías, pues persisten,
son recuerdo que arrastro por las calles.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Elegia

Ouvi dizer que não se dava com ninguém,
nos últimos tempos; subia sozinho a rua, até ao café,
e nada lhe desviava o olhar de uma atenção fixa
em algures, ou num pensamento que guardou para
si próprio. A vida é sempre uma realidade frágil
para quem se apercebe do outono e os primeiros ventos
do norte, que trazem consigo os céus limpos e as nuvens frias,
arrefecem a alma que não ganhou o hábito da solidão. “A poesia,
respondo-lhe, não dá resposta a esse último desconforto
do ser.” Ele não me ouve, agora que o seu próprio nome
se apaga na monotonia das tardes e das lentas estações. Só
uma ave antiga cruza, por vezes, o céu de esquecimento
em que a sua sombra dorme; deixando um sulco de asas,
como um verso, acordar por instantes a sua imagem.

Nuno Júdice. Um Canto na Espessura do Tempo (1992)


Elegía

He oído decir que no se llevaba con nadie,
últimamente; subía solo la calle, hasta el café,
y nada le desviaba la mirada de una atención fija
en algún lugar, o en un pensamiento que se guardó
para sí. La vida es al final una realidad frágil
para quien repara en el otoño y los primeros vientos
del norte, que traen consigo los cielos limpios y las nubes frías,
enfrían el alma que no ha adquirido el hábito de la soledad. “La poesía,
le respondo, no da respuesta a ese último desconsuelo
del ser.” Él no me oye, ahora que su propio nombre
se borra en la monotonía de las tardes y de las lentas estaciones. Sólo
un ave antigua cruza, a veces, el cielo del olvido
en que su sombra duerme; dejando un surco de alas,
como un verso, que despierta por instantes su imagen.

sábado, 9 de outubro de 2010

rendo-me à subjectividade

rendo-me à subjectividade.
de que outro modo escrever relatórios
num país de poetas?
quando digo pedra todos compreendem nuvem
quando digo nuvem todos compreendem pedra.
rendo-me enfim à subjectividade:
escrevo nuvem porque quero dizer pedra
sabendo que todos lêem pedra
quando escrevo nuvem.

José Carlos Barros. Casa de Cacela

me rindo a la subjetividad

me rindo a la subjetividad.
¿de qué otro modo escribir informes
en un país de poetas?
cuando digo piedra todos comprenden nube
cuando digo nube todos comprenden piedra.
me rindo en fin a la subjectividad:
escribo nube porque quiero decir piedra
sabiendo que todos leen piedra
cuando escribo nube.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

A casa onde às vezes regresso

A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos

Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem que se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem que se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo

Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração

José Tolentino Mendonça. A noite abre meus olhos.
3. A que distância deixaste o coração


La casa adonde a veces regreso

La casa adonde a veces regreso está tan lejos
de la que he dejado esta mañana
en el mundo
el agua ha ocupado el lugar de todo
reúno cubos, jarrones guardados
mas llueve sin parar desde hace años

Duermo en el mar, duermo al lado de mi padre
un viaje que se ha dado
entre las manos y el furor
un viaje que se ha dado: la noche se abate cerrada
sobre el cuerpo

Si tuviese tiempo todavía te entregaba
el corazón

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Debajo...

Debajo
de la piedra hay un reloj
y agujas que caminan y el rodar del agua bajo tierra
y encima de esa nube el tiempo
y tras del pájaro que vuela
otra piedra lanzada tras el reloj que escapa
y tras de todos esa sombra
que huye y el silencio y más allá de su luz
ese animal sin ojos
que aún
nos llama.


José María Millares Sall. Cuadernos (2000-2009)


Debaixo
da pedra há um relógio
e ponteiros que caminham e o rodar da água sob a terra
e em cima dessa nuvem o tempo
e atrás do pássaro que voa
outra pedra lançada trás o relógio que escapa
e atrás de todos essa sombra
que foge e o silêncio e além da sua luz
esse animal sem olhos
que ainda
chama por nós.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Entardecer na Praia da Luz

Espreguiçados, os ramos
das palmeiras filtram
a luz que sobra
do dia. É já noite
nas folhas. O branco
das paredes recolhe
o sangue e o vinho
das buganvílias
e hibiscos. Bebe-os
de um trago: saberás
que, mais do que cegueira, a noite
é uma embriaguez perfeita.

Albano Martins. Castália e Outros Poemas. Campo das Letras (2001)


Atardecer en la Playa de la Luz

Desperezadas, las ramas
de las palmeras filtran
la luz que resta
del día. Ya es de noche
en las hojas. El blanco
de las paredes recoge
la sangre y el vino
de las buganvillas
e hibiscos. Bébetelos
de un trago: sabrás
que, más que ceguera, la noche
es una embriaguez perfecta.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A morte é uma terra inacabada

os muros circundam aquele pedaço de terra
e o horário de trabalho fecha
por completo o carpir das velhas
mulheres. isto nunca acaba,
sempre há novas ervas a arrancar
folhas que ocultam os nomes
queridos dos idos sempre antes
do tempo. dizem
ao ouvido das lajes:
fazes cá falta, a vida
é dura para uma pessoa só
quando se tem duas
casas a tratar
e um amor a cumprir

Fernando Machado Silva. Em revista Transe Atlântico, 0


La muerte es una tierra inacabada

los muros circundan aquel pedazo de tierra
y el horario de trabajo cerca
por completo el plañir de las viejas
mujeres. esto nunca se acaba,
siempre hay nuevas hierbas que arrancar
hojas que ocultan los nombres
queridos de los idos siempre antes
de tiempo. dicen
al oído de las losas:
haces aquí falta, la vida
es dura para una persona sola
cuando se tienen dos
casas que cuidar
y un amor que cumplir

Não há vagas

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
está fechado:
"não há vagas"

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

          O poema, senhores,
          não fede
          nem cheira

Ferreira Gullar. Toda poesia


No queda sitio

El precio de la alubia
no cabe en el poema. El precio
del arroz
no cabe en el poema.
No caben en el poema el gas
la luz el teléfono
el acaparamiento
de la leche
de la carne
del azúcar
del pan

El funcionario público
no cabe en el poema
con su salario de miseria
su vida encerrada
en archivos.
Como no cabe en el poema
el obrero
que esmerila su día de acero
y carbón
en los talleres oscuros

―porque el poema, señores,
está cerrado:
"no queda sitio"

Sólo cabe en el poema
el hombre sin estómago
la mujer de nubes
la fruta sin precio

           El poema, señores,
           no apesta
           ni huele