sexta-feira, 20 de maio de 2011

Em legítima defesa

Sei hoje que ninguém antes de ti
morreu profundamente para mim
Aos outros foi possível ocultá-los
na sua irredutível posição horizontal
sob a capa da terra maternal
Choramo-los imóveis e voltamos
à nossa irrequieta condição de vivos
Arrumamos os mortos e ungimo-los
são uma instituição que respeitamos
e às vezes lembramos celebramos
nos fatos que envergamos de propósito
nas lágrimas, nos gestos, nas gravatas
com flores e nas datas num horário
que apenas os mate o estritamente necessário
Mas decerto de acordo com um prévio plano
tu não só me mataste como me destruíste
as ruas os lugares onde cruzámos
os nossos olhos feitos para ver
não tanto as coisas como o nosso próprio ser
A cidade é a mesma e no entanto
há portas que não posso atravessar
sítios que me seria doloroso outra vez visitar
onde mais viva que antes tenho medo de encontrar-te
Morreste mais que todos os meus mortos
pois esses arrumei-os festejei-os
enquanto a ti preciso de matar-te
dentro do coração continuamente
pois prossegues de pé sobre este solo
onde um por um persigo os meus fantasmas
e tu és o maior de todos eles
Não suporto que nada haja mudado
que nem sequer o mais elementar dos rituais
pelo menos marcasse em tua vida o antes e o depois
forma rudimentar de morte e afinal morte
que por não teres morrido muito mais tenhas morrido
Se todos os demais morreram de uma morte de que vivo
tu matas-me não só rua por rua
nalguma qualquer esquina a qualquer hora
com coisa por coisa dessas coisas que subsistem
vivas mais que na vida vivas na imaginação
onde só afinal as coisas são
Ninguém morreu assim como morreste
pois se houvesses morrido tudo estava resolvido
Os outros estão mortos porque o estão
só tu morreste tanto que não tens ressurreição
pois vives tanto em mim como em qualquer lugar
onde antes te encontrava e te posso encontrar
e ver-te vir como quem voa ao caminhar
Todos eram mortais e tu morreste e vives sempre mais

Ruy Belo. Todos os poemas II. "Nau dos Corvos". Assírio e Alvim (2004)


En legítima defensa

Sé hoy que nadie antes que tú
había muerto profundamente para mí
A los otros fue posible ocultarlos
en su irreductible posición horizontal
bajo la capa de tierra maternal
Los lloramos inmóbiles y volvemos
a nuestra inquieta condición de vivos
Guardamos a los muertos, los ungimos
son una institución que respetamos
y a veces recordamos celebramos
en los trajes que enfundamos a propósito
en las lágrimas, los gestos, las corbatas
con flores y en las fechas en horário
que nada más los mate lo estrictamente necesario
Pero sin duda de acuerdo con un plan previo
tú no solo me has matado además me has destruído
las calles los lugares por donde cruzamos
nuestros ojos hechos para ver
no tanto las cosas como nuestro propio ser
La ciudad es la misma y sin embargo
hay puertas que no puedo atravesar
sitios que me sería doloroso otra vez visitar
donde más viva que antes tengo miedo de encontrarte
Te has muerto más que todos mis muertos
pues esos los guardé, los festejé
mientras que a ti necesito matarte
dentro del corazón continuamente
pues prosigues de pie sobre este suelo
donde uno a uno persigo a mis fantasmas
y tú eres el mayor de todos ellos
No soporto que nada haya cambiado
que ni siquiera el más elemental de los rituales
por lo menos haya marcado en tu vida el antes y el después
forma rudimentaria de muerte y al cabo muerte
que por no haber muerto mucho más hayas muerto
Si todos los demás murieron de una muerte de la que vivo
tú me matas no solo calle a calle
en una esquina cualquiera a cualquier hora
con cosa a cosa de esas cosas que subsisten
vivas más que en la vida vivas en la imaginación
donde solo al final las cosas son
Nadie ha muerto así como tú has muerto
pues si hubieras muerto todo estaba resuelto
Los otros están muertos porque lo están
solo tú has muerto tanto que no tienes resurrección
pues vives tanto en mí como en cualquier lugar
donde antes te encontraba y te puedo encontrar
y verte venir como quien vuela al caminar
Todos eran mortales y tú has muerto y vives cada vez más

2 comentários:

Distraido disse...

Não conheço esse senhor Ruy Belo mas tal como tu, que te reviste no que eescrevi, eu revejo-me no que este Sr. escreveu.
É lixado ser-mos chutados... lixado mesmo...

Conttiinua a traduzir poois tens bom gosto na matéria prima que escolhes.

Sun Iou Miou disse...

Obrigada, não-assim-tão Distraído.