segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Receita para fazer um herói

Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.

Serve-se morto.

Reinaldo Ferreira. Um Voo Cego a Nada (1960)


Receta para hacer un héroe

Tómese un hombre,
Hecho de nada, como nosotros,
Y en tamaño natural.
Empápese su carne,
Lentamente,
De una certeza aguda, irracional,
Intensa como el odio o como el hambre.
Después, cerca del fin,
Agítese un pendón
Y tóquese un clarín.

Se sirve muerto.

1 comentário:

Alexandre de Castro disse...

Reinaldo Ferreira (1922-1959)foi um grande poeta,marginalizado no seu tempo e ignorado na actualidade. O seu pai foi o célebre repórter X, um grande jornalista que se celebrizou na imprensa portuguesa, espanhola e francesa.
Reinaldo Ferreira, tendo nascido em Barcelona, quando o seu pai ali trabalhava, viveu de perto o drama da Guerra Civil, que lhe inspirou o admirável poema,"A que morreu às portas de Madrid", a exaltar a heróica resistência das forças republicanas ao violento cerco a Madrid, imposto pelas tropas de Franco.
Em complemento ao lindo poema colocado aqui pela Maria Alonso, deixo ao leitor esse poema.

A que morreu às portas de Madrid

A que morreu às portas de Madrid,
Com uma praga na boca
E a espingarda na mão,
Teve a sorte que quis,
Teve o fim que escolheu.
Nunca, passiva e aterrada, ela rezou.
E antes de flor, foi, como tantas, pomo.
Ninguém a virgindade lhe roubou
Depois de um saque – antes a deu
A quem lha desejou,
Na lama de um reduto,
Sem nausea, mas sem cio,
Sob a manta comum,
A pretexto do frio.
Não quis na rectaguarda aligeirar,
Entre champagne, aos generais senis,
As horas de lazer.
Não quis, activa e boa, tricotar
Agasalhos pueris,
No sossego de um lar.
Não sonhou minorar,
Num heroísmo branco,
De bicho de hospital,
A aflição dos aflitos.

Uma noite, às portas de Madrid,
Com uma praga na boca
E a espingarda na mão,
À hora tal, atacou e morreu.

Teve a sorte que quis.
Teve o fim que escolheu.

Reinaldo Ferreira
(1922-1959)